Lamennais, um revoltado III.

As dificuldades do Padre Felicité-Robert de Lamennais recomeçaram em 1820, ao tempo ainda do reinado de Luís XVIII, tido como moderado e conciliador com os reflexos do império napoleônico e da própria Revolução Francesa.

Nesse tempo, o sacerdote bretão assume a redação do jornal “Le Conservateur” (O Conservador), periódico de oposição à monarquia restaurada, tempo em que refuta as críticas a seus ensaios sobre indiferença em matéria de religião, publicando mais dois estudos sobre a mesma temática.

Após ter sido bem recebido pelo Papa Leão XII, Lamennais publica vibrante crítica ao tratamento dispensado pelos reis Burbons à Igreja.

Seu trabalho, “De la religion considérée dans ses rapports avec l’ordre politique et civil” (Da religião e suas relações com a ordem política e civil), traduz o descontentamento com o monarca Carlos X, que bastante ligado à religião católica, e no afã revanchista de conter os avanços revolucionários, queria aliar religião e nobreza como suportes de seu governo.

Lamennais, ao tempo em que começava a sentir uma crescente insatisfação com as medidas reacionárias de Carlos X, desagradou sobremodo àquele rei autocrata, ao afirmar que o trono não estava coerente com a teocracia que afirmava possuir.

Sua crítica denunciava os bispos nos seus mandamentos e os missionários nos seus sermões de associarem imprudentemente os interesses da monarquia com os da Igreja. 

Contestava, portanto, o dever de obediência ao príncipe, enquanto ungido de Deus e da Igreja, princípio que impedia o exercício dos povos à liberdade.

Por outro lado, Carlos X restringiu o ensino, sobretudo aquele das ordenações eclesiásticas, submetendo os seminários e escolas religiosas à jurisdição da Universidade, tema que representava um retrocesso diante do tolerado por Napoleão.

Para Lamennais, a Religião na França estava afastada da sociedade política e civil, o Estado era ateu, o ateísmo tinha passado da sociedade política e civil para a sociedade doméstica, e o “rei não era senão uma lembrança venerável do passado, a inscrição de um templo antigo que se colocou no pórtico de um edifício moderno”, já que o poder era exercido pelo parlamento.

Parlamento, eleito pelo povo, é verdade! Mas, não representativo tanto.

Uma democracia rejeitada pelo padre bretão por entende-la fruto da união “monstruosa entre o protestantismo e a Revolução”.

Félicité Lamennais entendia que um governo puramente democrático, como aquele em mobilidade contínua e em rapidez medonha, submetido a paixões e opiniões seria o último excesso de despotismo.

Um despotismo pior do que aquele ditado por um só, afinal este possui os seus limites, enquanto aquele conduzido por todos em maiorias oscilantes não o possui.

Nesta democracia parlamentar ele via um conjunto de baixezas, falsas habilidades e disfarçadas paciências, ambiência hostil ao gênio e a virtude.

Lamennais, por tais opiniões tidas como subversivas, é processado e condenado a uma multa, e tem seus escritos confiscados e proibidos.

Se isso lhe causou dissabor de ordem jurídica, afinal sempre há um Promotor para acusar e um juiz para condenar, conte-se por acréscimo, que em sua defesa neste e em outros processos que se seguirão, faltaram-lhe até uma boa advocacia, sobrando-lhe perda de prazo inclusive, insuficiência de argumentação, havendo necessidade do próprio réu de defender-se oralmente.

A despeito destes revezes, surgiram-lhe seguidores e amigos como os religiosos Henri Lacordaire, brilhante capelão do Colégio Henrique IV, Prosper Guéranguer e Philippe Gerbet, e outros como Charles de Montalembert, François-René de Chateaubriand, autor de Génie du Christianisme, Ernest Renan que escreveu o notável Vida de Jesus, e até George Sand, romancista de comportamento precursor das liberdades femininas, grande amor de Frederic Chopin.

A acompanhado de Lacordaire e Montalembert, Lamennais funda o jornal “L’Avenir” (O Futuro), de grande sucesso inicial, logo colhendo os dissabores de rejeição do governo e da própria Igreja francesa que se acomodava à nova ordem.

O “L’Avenir” pregava um catolicismo liberal embasado na liberdade de consciência. Algo meio complicado, mas de ampla aceitação, defendendo um liberalismo novo, diferente daquele antigo dos iluministas que odiava o cristianismo.

Nesse novo liberalismo era preciso separar a Igreja do Estado, algo que ensejou restrições de ambas instituições; do Estado porque a queria junto a si para melhor comandar o povo, e da Igreja, porque muitos padres e prelados acomodavam-se às sinecuras promovidas pelo Estado.

Atacado por todos os lados, “L’Avenir” enuncia seu ideário: “Deseja que; 1. Haja separação absoluta da Igreja do Estado, como a nascente República dos Estados Unidos da América; 2. Que o clero não seja mais pago pelo Estado; 3 Que as nossas Igrejas sejam invioláveis como a casa dos cidadãos; 4. A liberdade de nos associar para a defesa de nossos direitos; 5. Que não nos forcem a usar um hábito como são forçados os judeus que não possuem pátria nem documentação; 6. O direito de nomear nossos bispos e não depender do beneplácito de um ministro que pode ser inimigo de nossas crenças, o que é um absurdo; 7. A liberdade de ensino, porque nós não queremos que nossas crianças sejam educadas mediante um monopólio da instrução que é contrário a liberdade de cultos, à liberdade de opiniões, etc.

À parte isso, um novo Rei, Luís Filipe de Orleans tinha sido eleito, assumindo no lugar de Carlos X que tinha sido derrubado pela revolução de julho de 1830.

Começara um regime novo, mais consonante à burguesia e o capital financeiro, nocivo também ao pensamento libertário de “L’Avenir”.

Em 9 de maio de 1831, ainda em plena lua-de-mel do novo regime, o governo manda fechar em Paris uma “escola gratuita aberta sem autorização da Universidade”.

Era um ataque solerte à liberdade de ensino religioso, pregado por Lamennais.

Como na hierarquia da Igreja francesa ninguém ousasse debater com o Padre bretão, sobretudo porque passara a se aninhar melhor com o “Rei Burguês”, Luís Filipe (1830-1848), apelou-se a Roma, onde assumira um Papa novo, Gregório XVI (1831-1846).

O novo Papa, Gregório XVI, nascido Bartolomeu Alberto Capellari, era monge da Congregação Camaldulense da Ordem de São Bento, Ordem essencialmente contemplativa e destinada a reintegrar a dimensão solitária da ordem monástica.

Sua eleição e posse foram tumultuadas. Havia muita invasão e rebeldia nos Estados Papais, em aceno à época das Revoluções.

O próprio Papa houvera escrito um texto sobre isso,  “O triunfo da Santa Sé e da Igreja contra os assaltos dos inovadores", quando dirigira na Cúria, a Congregação da Propaganda.

Tornar-se-ia depois um desses papas "zelantes", que primam por excesso de zelo contra as ideias novas, pela afirmação da soberania do catolicismo, da eternidade de Roma e da infalibilidade papal.

Acreditando convencer o novo Papa, os três peregrinos do “L’Avenir”; Lamennais, Lacordaire e Montalembert dirigem-se a Roma onde são recebidos com frieza pelo séquito de Gregório XVI e os jesuítas.

Os “Três peregrinos de Deus e da Liberdade”, como assim se proclamavam, redigem um memorial, resumindo suas doutrinas para transmissão ao Papa.

Desnecessário dizer que muito mais que o memorial, chegaram aos ouvidos do Papa as queixas da Igreja francesa.

Finalmente, após espera de dois meses, Gregório XVI os recebe no dia 18 de março de 1832, numa audiência de um quarto de hora; um tempo de mera apresentação protocolar.

Para os bispos franceses “era preciso que o Papa humilhasse este espírito soberbo de modo a desencorajá-lo, impondo-lhe um longo silêncio e reduzindo-o ao papel de um simples suplicante”.

Lamennais esperou inutilmente a resposta do Papa ao seu memorial, os meses se passavam e todos desconversavam a respeito.

Resolve retornar à França, mas ali está sendo processado por dívidas de suas publicações proibidas.

Prefere atravessar a Toscana, a alta Itália e o Tirol em demanda de Munique na Alemanha, oportunidade em que vê a população veneziana sob a perpétua ameaça do canhão.

Enquanto isso, chega a Roma, datada de 23 de abril de 1832, carta destinada ao Soberano Pontífice com reclamações de um pequeno grupo de prelados franceses, incluindo bispos e arcebispos, anunciando condenações de numerosas  proposições retiradas dos escritos de Lamennais.

Bartolomeu Alberto Capellari, monge camuldense que se tornou o Papa Gregório XVI (1831-1846), autor da Encíclica "Mirari vos".

Entre as proposições condenadas os bispos assinalaram: 1. “Todos os povos antes de Jesus Cristo conservaram, mesmo em meio à idolatria, a noção de um Deus único, do verdadeiro Deus”; 2. “A idolatria não é a negação de um dogma, mas a violação de um preceito”; 3. “Os cristãos creem em tudo que acreditava a humanidade antes de Jesus Cristo, e a humanidade acreditava em tudo o que creem os cristãos”; 4. “Os Jesuítas tiveram seu tempo, é árvore gigante que não mais ficará verde. Eles não podem fazer mais nada pela religião”.

Nesse contexto, Lamennais recebe em Munique um exemplar da encíclica papal, “Mirari vos” (15/08/1832), condenando o indiferentismo religioso e a liberdade de consciência, de imprensa e de pensamento”, tudo aquilo que se debatia no jornal “L’Avenir”.

Ao ler a Encíclica, Lamennais decepcionado disse aos amigos Lacordaire e Montalembert: “Deus falou, não me resta mais nada senão dizer: ‘Fiat voluntas tua’” (que tua vontade seja feita).

A encíclica, sem citar o nome de Lamennais nem o do jornal “L’Avenir” queria justamente aquilo; o silêncio de ambos.

Fora um golpe letal, para o jornal “L’Avenir” que chegou ao fim, definitivamente.

Quanto a Lamennais, após um período de silêncio, voltaria a agitar, com mais vigor, o debate religioso dentro e fora da Igreja. 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
Comentários

Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nosso portal. Ao clicar em concordar, você estará de acordo com o uso conforme descrito em nossa Política de Privacidade. Concordar Leia mais