Lamennais, um revoltado IV.

No capítulo 14 da Encíclica “Mirari Vos”, o Papa Gregório XVI fulmina letalmente o jornal “L’Avenir”, sem citá-lo nem aos seus editores, os Padres Félicité-Robert de Lamennais e Henri Lacordaire, tomando o catolicismo liberal ali defendido como perniciosa contaminação de indiferentismo religioso.

“Dessa contaminadíssima fonte do ‘indiferentismo’” – explicita “Mirari Vos” em seu capítulo 14 – “verte aquela absurda e errônea sentença, ou antes delírio, que se deva admitir e garantir para cada um a liberdade de consciência. Trata-se de um erro venenosíssimo para o qual aplaina a vereda aquela plena e desmedida liberdade de opinar que vai sempre se alimentando em dano da Igreja e do Estado”.

E prossegue incisivamente sem consideração, que enseje moderação paternal e até um pouco de moderação, por caridade: “Nem falte quem ouse descaradamente (grifo nosso) afirmar que dessa licença vem alguma vantagem para a religião. ‘Mas qual morte pior para a alma pode haver do que a liberdade do erro!’, exclama s. Agostinho”.

“Descaradamente”, pressupunha-se tudo o que lhe parecia “a transformação dos espíritos, a depravação da juventude, o desprezo no povo pelas coisas sagradas e leis mais santas, em uma palavra, daí provém a peste da sociedade (grifo nosso), mais nociva do que qualquer outra”.

Condenava-se a “excessiva liberdade de opinião, pela licença dos conciliábulos, pela mania de novidade”, enquanto causa de “encaminhamento triste para a ruína” das nações.

Fustigava-se, agora no capítulo 15, “aquela péssima, aborrecida e nunca por demais execrada liberdade de imprensa (grifo nosso) ao divulgar escritos de qualquer gênero. Liberdade que alguns ousam invocar e promover com tanto clamor”.

Horrorizava-se o Papa com tantos escritos, “verdadeira montanha de livros, opúsculos, e pequenos escritos – pequenos no tamanho, mas grandíssimos na malícia – dos quais vemos com lágrimas nos olhos sair a maldição e inundar a inteira face da terra”.

Denunciava de novo o “descaramento” de alguns ao divulgar com “insultante pretensão, que essa inundação de erros é mais que abundantemente compensada por alguma obra, que em meio a tanta tempestade de maldade atua para defender a religião e a verdade”.

E questionava firmando condenação assertiva: “Poder-se-á dizer que alguém seja sadio de mente quando deliberada e publicamente divulga, vende, transporta, e até mesmo bebe o veneno, porque existe determinado remédio que devidamente usado, faz com que alguns escapem da morte? “

Daí, era preciso “exterminar a peste dos maus livros” (grifo nosso), como acontecera desde o tempo dos Apóstolos, apoiando-se inclusive nos Concílio Lateranense e Tridentino, e nos Papas Alexandre VI (1483-1503) e Leão X (1513-1521). O primeiro, o espanhol Rodrigo Bórgia, aquele que dividiu o mundo com as terras ‘descobertas e a descobrir entre Espanha e Portugal’ abençoando o Tratado de Tordesilhas, e o segundo o Papa que bem ou mal, não soube contemporizar com a Reforma Protestante de Martinho Lutero. Algo que mesmo em conhecendo a História, os homens teimam em reincidir no erro.

Em acréscimo, “Mirari Vos” mirava as “doutrinas tendentes a fazer desmoronar a fidelidade e submissão devidas aos príncipes”, afinal conforme Romanos 13,2, ‘não existe autoridade que não provenha de Deus. Quem, portanto, resiste à autoridade resiste à ordem de Deus e os que resistem condenam-se a si próprios’.

E prosseguia Gregório XVI em contracorrente revolucionária: “Eis porque o divino e o humano direito clamam contra os que com tramas infames e com maquinações traiçoeiras e sediciosas empregam seus esforços em desacreditar os príncipes, chegando ao ponto de tirá-los dos tronos”, entendendo tais desafios como de “oprobioso delito”, insolentes, detestáveis e ímprobas ações “contra a luminosa e inalterável submissão aos príncipes, que necessariamente derivam dos santíssimos preceitos da religião cristã”.

Denunciava que sob a aparência de uma promessa de liberdade, tais conspirações pretendiam a mais dura submissão, repetindo “os celerados delírios e desígnios dos valdenses, dos begardos, dos wiclefistas e demais filhos de Belial, que foram a ignomínia e a escória do gênero humano, por isso merecidamente tantas vezes atingido pelos anátemas desta Sé Apostólica”.

Gregório XVI, em reação contrarrevolucionária retomava as antigas heresias:

1. A dos Valdenses, inspirada em Pedro Valdo, um comerciante de Lyon, que por volta de 1174 distribuíra seus bens aos pobres e ousara pregar a Bíblia sem ser sacerdote, para tanto utilizando uma versão do livro sagrado em linguagem popular, alvo de sucessivas perseguições da Igreja Católica, por séculos.

2. Os begardos eram um conjunto de pregadores errantes, surgidos em 1215 na Alemanha, que denunciavam a corrupção do clero, defendendo uma vida fiel ao Evangelho em semelhança às comunidades dos primeiros apóstolos, condenados pelo Papa Bonifácio VIII e pela bula papal “In agro domínico” , em 1329.

3. Os Wiclefitas, adeptos de John Wiclef, sacerdote e professor de teologia em Oxford, autor de “Triálogus” (1382), condenado por suas ideias reformistas contra os costumes do clero, a posse de bens e as desordens do papado durante a “Grande Cisma do Ocidente”.

4. Os “Filhos de Belial”, aqueles “que não servem para nada”, bandidos, vagabundos, desonestos, grosseiros, vis, inescrupulosos, etc”, em vasta conotação bíblica. Inimigos do povo de Israel, talvez relacionado ao deus semita Baal (senhor). Algo inerente também a Satanás, por desprovido de luz.

“Mirari Vos” externava a dor com que fustigava o erro, repleto “de fé naquele que manda aos ventos e leva a tranquilidade, para que empunhando o escudo da fé, sigais animados a combater as batalhas do Senhor”.

Recomendava, enquanto missão para seu rebanho: “A vós compete estar, antes de qualquer outro, qual resistente muralha perante qualquer altura soberba que queira se levantar contra a ciência de Deus. Brandi a espada do Espírito que é a palavra de Deus, e sejam por vosso intermédio abastecidos de pão os que têm fome de justiça… Que cada raiz de amargura seja arrancada do terreno a vós confiado, e, eliminada toda semente daninha, viçosa nela loureje e seja abundante a messe da virtude”.

Abraçava com “paterno afeto aqueles que se aplicam aos estudos filosóficos e mais ainda às sagradas disciplinas. Inculcai neles cuidadosamente que se abstenham de confiar somente nas forças do próprio engenho para não abandonarem o caminho da verdade e enveredarem, imprudentemente, naquele seguido pelos ímpios. Lembrem que Deus é o verdadeiro guia da sabedoria, que corrige os sábios (cf. Sb 7,15). Não é possível conhecer Deus sem Deus, o qual, por meio do Verbo, ensina os homens a conhecerem Deus”

Fulminava finalmente o laudo condenatório: “É próprio do soberbo, ou antes do estulto, o querer pesar em balanças humanas os mistérios da fé, que superam todo conceito humano, e confiar na razão de nossa mente, que pela própria condição da natureza humana é demasiado frágil e malsã”.

Era um documento que se creditava sem nenhum erro humano, embora estivesse a condenar erros do humano pensar.

De imediato, a Encíclica Mirari Vos causou dissenso entre os padres Lamennais e Lacordaire. Não irão percorrer o mesmo caminho. Lacordaire submeteu-se ao pensamento curial não mais enveredando em novas polêmicas. Continuará sendo o grande pregador a embevecer os espíritos simples e os carentes do absoluto. Destacar-se-á como formador de jovens

Quanto a Lamennais, após um período de silêncio obsequial, começa a sentir os efeitos da condenação papal e seus reflexos. Denuncia numa carta a Montalembert “os anátemas de uma hierarquia cega e corrompida”. Seu desejo é de “jamais abdicar de sua independência como homem”.

Escreve algumas vezes ao Papa, queixando-se das calúnias que sofre de todos os lados, inclusive do Bispo de Rennes, Dom Lesquem, que em grande publicidade lhe retirara todos os poderes eclesiásticos. Compromete-se a fazer tudo para obedecer “em tudo que a consciência o permitir”. Cartas pessimamente recebidas pelo séquito papal.

Gregório XVI – Quem pôs tais idéias em sua cabrça?

Lamennais – Ele!

Charge obtida na internet

À parte isso, publica com grande sucesso “Palavras de um crente” (Paroles d’un Croyant), livro que teve oito edições por toda Europa, mas que teve uma péssima recepção no seio da Igreja Galicana, neste tempo em boas relações com o Rei Luís Filipe de Orleans. Igreja que se acomodara às benesses estatais e abominava as teses lamennaiseanas de separação do Estado, germe do que seria décadas depois o estado laico implantado pelas democracias atuais.

É nesse momento que o Papa Gregório XVI desfere seu segundo e definitivo golpe contra Lamennais, por meio da Encíclica “Singulari nos”, combatendo os erros em “Palavras de um Crente”.

Sem citar Lamennais, o Papa qualifica as “Palavras de um Crente” como sendo uma obra de “imensa perversidade”.

Félicité-Robert de Lamennais começa então a sofrer diversos reveses, financeiros inclusive, tendo que vender sua enorme biblioteca, uma herança de família, para conseguir sobreviver, já que estava ao desamparo da Lei, servil ao Estado do Rei Burguês, dos setores agnósticos que o rejeitavam com um vigoroso combatente do cristianismo, e da Igreja, por seus prelados e ampla hierarquia, que se não o incineravam em praça pública era porque o aclaramento das luzes não mais permitia autos de fé em medievais fogaréus.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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