Participação das Mulheres na Política

No Brasil, o reconhecimento da cidadania (entendida essa, nesse momento, enquanto aptidão para exercício de direitos políticos ativos e passivos, capacidade eleitoral ativa e passiva, direito de votar e ser votada) da mulher é historicamente contemporâneo aos dos demais países do mundo ocidental.

Nestes, o processo de declaração do direito feminino ao voto é especialmente desencadeado a partir do início do século XX.

E de igual modo sucedeu no Brasil, no qual o reconhecimento da cidadania da mulher ocorreu na década de 1930, mais especificamente em 1932, durante o Governo Getúlio Vargas pós "Revolução de 1930" e, em nível constitucional, com a Constituição de 1934 [Esse processo, também no Brasil, vai das lutas concretas da realidade às normas jurídicas estatais, sendo importante o registro de que nos estados, em especial o pioneiro Rio Grande do Norte, o reconhecimento jurídico-formal do sufrágio das mulheres antecedeu e pressionou o reconhecimento no âmbito federal/nacional (BRASIL, SENADO, 2016)]  (em alguns países europeus, o direito ao voto das mulheres somente foi reconhecido após a Segunda Guerra Mundial – caso de França e Itália, em 1945 – e há até o caso tardio da Suécia, em que o direito ao voto das mulheres foi reconhecido apenas em 1971).

Contudo, essa relativa contemporaneidade mundial no que se refere ao direito das mulheres ao voto não se traduziu em participação ativa da mulher na política.

Pode-se afirmar que não há participação ativa da mulher na política nem sob a perspectiva formal de maior presença quantitativa nos espaços estatais de poder e centros de decisões do sistema democrático-representativo, muito menos sob a perspectiva material de controle da agenda de discussões e deliberações sobre políticas públicas de emancipação da mulher e de transformação do estado de coisas machista e patriarcal da estrutura econômica e social.

Mesmo efetuando um corte para examinar o quadro de participação política formal da mulher a contar da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 até o momento presente, tem-se um quadro de reduzida participação, a despeito de sucessivas medidas de ação afirmativa eleitoral, com reserva (cotas) para mulheres nas candidaturas apresentadas pelos partidos políticos às vagas preenchidas em sistema eleitoral proporcional (Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas, Câmara Distrital e Câmaras Municipais).

Significativo é o dado de que na composição da Câmara dos Deputados da atual legislatura, apenas 51 (cinquenta e uma) mulheres foram eleitas, o que representa, no total de 513 (quinhentos e treze), o percentual de 9,9%, ou seja, inferior a 10% do total (BRASIL, SENADO, 2016). A atual relação representativa de gênero na Câmara Federal é de 90,1% de homens e 9,9% de mulheres, sendo que as mulheres representam atualmente 51,3% da população (IBGE) e 52% do eleitorado (TSE) (BRASIL, SENADO, 2016).

Já quando se parte para a análise material da afirmação da temática de gênero como políticas públicas de combate à discriminação e de promoção da igualdade real (combate à violência doméstica e familiar, promoção da igualdade efetiva no mercado de trabalho etc), o déficit se revela ainda mais acentuado, não sendo difícil constatar que quando ocorrem, resultam de muito esforço e luta dos movimentos sociais organizados insurgentes contra o predomínio masculino e machista da agenda política decisória.

As lutas identitárias de gênero e suas importantes conquistas

As lutas identitárias em geral foram importante marco no quadro geral das lutas pelas transformações sociais, no contexto do multiculturalismo contemporâneo.

Vladimir Safatle bem apontou:

Durante certo tempo, embalada pelos ares libertários de Maio de 68, a esquerda viu na ‘diferença’ o valor supremo de toda crítica social e ação política. Assim, os anos 1970 e 1980 foram palco da constituição de políticas que, em alguns casos, visavam a construir a estrutura institucional daqueles que exigiam o reconhecimento da diferença no campo sexual, racial, de gênero etc. Uma política das defesas das minorias funcionou como motor importante do alargamento das possibilidades sociais de reconhecimento. Essa política gerou, no seu bojo, as exigências de tolerância multicultural que pareciam animar o mundo, sobretudo a partir de 1989, com a queda do Muro de Berlim” (2012, p. 27).

Pois bem, numa sociedade patriarcal e machista, econômica e socialmente estruturada em torno da figura do homem, e na qual tanto os aparelhos de controle e repressão privados quanto o estatal oprimem a mulher, vale registrar os significativos avanços obtidos até aqui no que se refere à afirmação das específicas pautas e reivindicações de gênero.

Com efeito, o "feminismo" conseguiu abrir espaços para a mulher no mercado de trabalho, com paulatina e progressiva ocupação de postos de trabalho antes absolutamente restritos aos homens, ainda que permaneçam diferenças significativas de tratamento profissional e mesmo de reserva dos melhores e mais bem remunerados postos aos homens [“Apesar de receberem menos que os homens no mercado de trabalho, elas vêm a cada ano ocupando mais espaços. Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE/RAIS), de 2012, as mulheres ocupam atualmente 38% dos cargos na medicina, 43% na advocacia e na Justiça e são 60% na área da arquitetura” (BRASIL, SENADO, 2016)], implementar políticas de combate à violência doméstica e familiar, ocupar espaços nos debates públicos contra o tratamento sexualmente discriminatório.

O feminismo também conseguiu abrir espaços dentro das tradicionais lutas de esquerda, em cujos espaços de lutas as temáticas da opressão de gênero eram desconsideradas e até mesmo reproduzidas. A socióloga e professora titular da USP Eva Blay aponta:

Em 1964, comecei a ler e escrever sobre feminismo. Esta era uma palavra absolutamente única para a época. O Departamento de Sociologia da USP tinha alguns professores abertos ao tema, mas os outros davam risada, falavam que o feminismo era algo reles (…) Por outro lado, fora da academia, eu via que creche, nas fábricas, era uma palavra feia, inclusive para os homens sindicalistas, que afirmavam que as pautas das mulheres atrapalhavam a pauta geral dos sindicatos (apud MODELLI, 2016).

As conquistas acima apontadas se deram tanto no âmbito normativo abstrato (a exemplo do que sucede com as específicas normas constitucionais protetivas das mulheres e impositivas de ações afirmativas de igualdade material de gênero, como as regras de aposentadoria e de garantia de especifica proteção no mercado de trabalho) quanto no âmbito da realização efetiva de programas governamentais.

A abertura para participação formal dos movimentos feministas em conferências e conselhos de participação social também é um capítulo importante desse progresso.

Essas conquistas, todavia, não conseguem atingir o âmago estrutural das relações que geram a exclusão, a opressão e a discriminação de gênero.

Noutras palavras, a despeito da maior presença das pautas de gênero e das lutas feministas, a sociedade permanece patriarcal e machista, e a tomada de decisões, inclusive no que se refere às específicas pautas, permanece tema de amplo predomínio machista.

Vale registrar, por oportuno e importante, que o machismo das sociedades capitalistas é específico em relação ao machismo existente nas sociedades pré-capitalistas, em que o patriarcado se dava pela força (escravidão) ou pela religião/moral (feudalismo).

No capitalismo o patriarcado se dá pela peculiaridade de o homem ser o dono do capital e a forma-valor assumir a forma masculina. O capitalismo constituiu um específico patriarcalismo capitalista. Alguém tem sobretrabalho no capitalismo, e esse alguém é a mulher (MASCARO, 2013).

É não apenas a manifestação do patriarcado tradicional, própria das sociedades pré-capitalistas, mas também e sobretudo a manifestação do patriarcado especificamente capitalista que precisa ser combatida e debelada, objetivo que não se tem alcançado pela necessária, legítima e combativa luta identitária.

Das lutas identitárias à retomada das lutas universalistas

O que sucede com as lutas identitárias de gênero é o mesmo que sucede com as lutas identitárias em geral [Lutas em questões raciais, a exemplo das lutas dos movimentos negros e indígenas, lutas pela dignidade da orientação sexual homoafetiva – movimentos LGBT – lutas dos movimentos de defesa da criança, do adolescente e da juventude, lutas em defesa do meio ambiente, dos trabalhadores rurais sem terra, dos trabalhadores urbanos sem-teto]: um passo importante, até mesmo crucial, foi a sua afirmação identitária, a especialização de suas pautas específicas, a visibilidade dos seus problemas específicos dentro do contexto maior de uma sociedade desigual econômica e socialmente, mas o passo seguinte não tem viabilidade transformadora da realidade estrutural se não acompanhada de um retorno às lutas universalistas.

Noutras palavras: não houvesse a específica organização e atuação política militante – dentro do campo daqueles que lutam por igualdade social – das mulheres, dos negros, dos índios, dos homossexuais etc., suas específicas formas de opressão estariam despercebidas dentro do contexto maior da opressão geral-social da sociedade capitalista contemporânea, mas a transformação estrutural dessa sociedade capitalista, base maior da existência de todas as formas de opressão, somente será viável com a reunião (ou até melhor dizendo, "re-união") das lutas setorizadas em lutas gerais.

Vladimir Safatle registra que, em certa medida, a partir de um certo momento, as lutas identitárias, a despeito de suas legítimas aspirações, passam a poder servir como poderoso instrumento político até mesmo às posições mais reacionárias:

Por um lado, tal dinâmica teve sua importância por dar maior visibilidade a alguns dos setores mais vulneráveis da sociedade (como negros, mulheres e homossexuais). No entanto, a partir de certo momento, começou a funcionar de maneira contrária àquilo que prometia, pois podemos atualmente dizer que essa transformação de conflitos sociais em conflitos culturais foi talvez um dos motores maiores de uma equação usada à exaustão pela direita mundial, em especial na Europa. Ela consiste em aproveitar-se do fato de as classes pobres europeias serem compostas majoritariamente por imigrantes árabes e africanos e, assim, patrocinarem uma política brutal de estigmatização e exclusão política travestida de choque de civilizações (2012, p. 28).

A “re-união” das lutas particulares em lutas pela universalidade concreta em prol da igualdade material é então essencial às pautas políticas de esquerda.

Do contrário, além de não atacar as verdadeiras causas da discriminação e opressão de gênero, as lutas identitárias feministas correm o risco de, ainda que tópica e pontualmente, traduzir-se em lutas para que as mulheres sejam exploradas tal como os homens, sem que isso contribua para o alcance das essenciais mudanças estruturais do capitalismo opressor em geral e por isso mesmo opressor em particular das mulheres. Ou ainda de ter-se o cenário de lutas feministas em disputa com lutas de outros segmentos sociais oprimidos, explorados e discriminados, como sucede em casos de criminalização das práticas machistas que resulta muitas vezes em repressão e opressão contra negros e pobres, dentro do fetiche da prisão e do direito penal como justiça e na verdade reprodutor da dinâmica social de controle.

Outro exemplo pode ser apontado no caso da sub-representação das mulheres negras, mesmo quando há uma representação política maior das mulheres em geral.

Flávia Rios bem aponta que “Desde sempre, houve baixíssima representação de negras no Parlamento brasileiro” (apud MODELLI, 2016) e que “Mesmo quando a representação das mulheres é alta, é baixa a representação das mulheres negras” (apud MODELLI, 2016), o que pode representar um espaço de disputas particulares de grupos de gênero oprimidos dentro da pauta particular maior do feminismo e da discriminação racial.

É por isso que Slavoj Zizek afirma que

As três reações fundamentais da esquerda ao processo de globalização parecem inapropriadas: o multiculturalismo liberal; o intento de aceitar o populismo diferenciando, detrás de sua aparência fundamentalista, a resistência contra a ‘razão instrumental’ e o intento de manter aberto o espaço do político (1997).

Mais ainda, Zizek percebe que ainda que “o intento de manter aberto o espaço do político” (1997) parta de uma visão correta, evita a pergunta crucial, que é “(…) como fazemos para reinventar o espaço político nas atuais condições de globalização?” (destaque do autor) (1997). Assim, conclui que a “[…] politização do conjunto de lutas particulares, que deixa intacto o processo global do capital, claramente resulta ineficiente” (1997), que é a premissa do presente trabalho, no que se refere especificamente à politização das lutas feministas.

A participação da mulher na política no contexto da retomada das lutas universalistas

O norte das lutas identitárias de gênero, no que se refere à participação da mulher na política, parece ser o da retomada das lutas universalistas pela igualdade social e justiça concreta, contra as formas de opressão que caracterizam o capitalismo.

Nessa toada, ainda que formalmente importante a participação quantitativa das mulheres nos espaços de poder do sistema político-representativo, o mais importante é a direção que essas lutas possam imprimir no sentido de transformação e mudança concreta das estruturas da sociedade capitalista, capaz de ensejar, a partir da superação das causas da opressão, a construção de uma sociedade efetivamente livre, justa e solidária – reduzindo as desigualdades sociais e regionais e  erradicando a pobreza e a marginalização –  e sem preconceitos de sexo.

Nesse quadro, importa menos que as mulheres acumulem conquistas específicas voltadas à igualdade material no contexto maior de uma sociedade estruturalmente desigual e importa mais que as mulheres acumulem conquistas voltadas à transformação da sociedade como um todo, a partir da ruptura com as causas estruturais das desigualdades em geral, para com isso atingir o objetivo específico de uma sociedade plenamente caracterizada pela igualdade de gênero, sem opressão nem discriminação de sexo, sem sobre-exploração do trabalho da mulher.

Em termos de participação da mulher na política, a compreensão de que o retorno às lutas social e estruturalmente universalizantes – na concepção de Vladimir Safatle (2012) – sem perder de vista as lutas específicas, desde que incluídas na perspectivas dessa luta geral radical, é essencial para que o objetivo de uma sociedade em que não apenas a visibilidade formal mas também e sobretudo as discussões e deliberações, bem como os direcionamentos políticos se deem com plena e efetiva igualdade de gênero.

É a visão de Zizek:

A lição que se pode extrair de tudo isto é que não há forma de impedir o ser parcial, na medida em que a neutralidade implica tomar partido. A pessoa de esquerda não viola simplesmente a neutralidade imparcial liberal, ela alega que o que não existe é a tal neutralidade. Desde logo, o clichê do centro liberal é que ambas suspensões (do direito) a de esquerda e a de direita, apontam em definitivo ao mesmo, à ameaça totalitária à vigência da lei. A consistência da esquerda está em demonstrar que, pelo contrário, cada uma das duas suspensões (do direito) segue uma lógica distinta. Ainda que a direita legitima a suspensão da Ética desde uma postura anti-universalista, apelando a sua identidade particular (religiosa, patriótica) que invalida toda moral universal ou norma legal, a esquerda legitima sua suspensão da ética apelando precisamente à verdadeira universalidade por vir (1997).

Nessa perspectiva, Zizek conclui que as lutas de esquerda não devem perder de vista o horizonte da universalidade concreta:

[…] dito de outro modo, a esquerda aceita o caráter antagônico da sociedade (não há posição neutra, a luta é constitutiva) e, ao mesmo tempo, se mantém universalista (fala em nome da emancipação universal). Na perspectiva de esquerda, aceitar o caráter radicalmente antagônico (é dizer, político) da vida social, aceitar a necessidade de ‘tomar partido’, é a única forma de ser efetivamente universal” (1997).

Conclusões

Ao cabo deste trabalho, é possível concluir que a despeito de sua importantíssima e indispensável atuação, as lutas identitárias de gênero devem redirecionar os seus esforços para as lutas universais concretas, no sentido de atacar as causas estruturais do patriarcado especificamente capitalista, num viés totalizante, de modo a viabilizar o alcance, pelas lutas materiais concretas da dinâmica social, uma sociedade livre de discriminação e opressão de gênero.

Nesse contexto, a participação da mulher na política deve ser menos na importante expressão simbólica quantitativa de presença nos espaços de poder do aparato democrático-representativo e mais nas lutas sociais concretas dentro da perspectiva universal de superação do capitalismo, com reinvenção do espaço político voltado ao alcance dessa meta.

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*Trabalho originalmente apresentado no 19º REDOR – Encontro Internacional da Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher e Relações de Gênero, em 17/06/2016, realizado na Universidade Federal de Sergipe, publicado nos anais, disponível em http://editorarealize.com.br/revistas/ebook_redor/trabalhos/gt08.pdf

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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