Cartagena, do amor e outros demônios

Estive recentemente na cidade de Cartagena de Índias, numa viagem cercada de muita expectativa, pelo fascínio que a torna um dos polos mais procurados pelos turistas que visitam a Colômbia. De fato, o interesse cada vez mais crescente de turistas encontra a devida medida no contraste que existe entre a parte mais antiga, intramuros e a região dos arranha-céus, repleta de hotéis de luxo, que a faz ser chamada de  “a nova Miami”.
Em Cartagena, Gabriel Garcia Marques, considerado um “monumento” nacional  da Colômbia, teve o seu primeiro trabalho como repórter de um periódico local. Sua experiência jornalística inclusive influenciou parte de sua monumental obra, colhendo na realidade dos fatos o mote para a sua criação ficcional. Nesse contexto, destaco o  livro Do amor e outros demônios, ambientado na cidade de Cartagena e que terminou sendo parte do meu roteiro turístico. Chegaram até a dizer que  ele “inventava” notícias, graças a sua criatividade. Mas é inegável a influência e a importância do jornalismo na sua obra. Para ele, “o jornalismo é uma paixão insaciável. Quem não sofreu essa servidão que se alimenta dos imprevistos da vida não pode imaginá-la. Quem não viveu a palpitação sobrenatural da notícia, o orgasmo do furo, a demolição moral do fracasso não pode sequer conceber o que são. Ninguém que não tenha nascido para isso e esteja disposto a viver só para isso poderia persistir numa profissão tão incompreensível e voraz (…)”
A literatura de Gabo, como é carinhosamente reverenciado por seus patrícios, transpôs  todas as barreiras geográficas e deixou para o mundo alguns dos romances mais grandiosos dos Século XX, como Cem anos de solidão, que lhe deu o Nobel da Literatura e O amor nos tempos do cólera, só para citar essas duas obras primas.
No livro Do amor e outros demônios, que tive a sorte de incluir na minha bagagem  para uma leitura no clima da viagem, escrito por Gabo em 1994, ele evoca uma lembrança do seu tempo de repórter em Cartagena, nos idos de 1949, quando fez uma reportagem de um estranho fato ocorrido no histórico Monastério das Clarissas, um convento das Irmãs de Santa Clara, então sendo reformado e readequado  para a construção de um hotel de luxo, o que exigia o esvaziamento de criptas funerárias antigas.
Em Cartagena, visitei o  Hotel Santa Clara, localizado na região amuralhada da cidade e desci na profundidade  de uma única cripta funerária conservada como ponto de interesse, na qual Gabo teria observado o estranho fenômeno, no longínquo 1949. Enviado pelo chefe de redação do jornal onde ele desenhava as primeiras letras de repórter, Gabo foi observar o esvaziamento dessas criptas do antigo monastério, onde estavam enterrados gerações de bispos, abadessas e outros personagens que permearam a história da Colômbia,  então colônia da Espanha, em finais do século XVIII. Numa dessas criptas descortinou-se a história de mistério envolvendo os restos mortais de uma jovem marquesa, cuja “cabeleira  se arrastava como uma cauda de um vestido de noiva”.  Sierva Maria de Todos los Angeles, esse era o nome da marquesinha, com cabelos que não pararam de crescer. Dessa observação, cria o romance.
A história de amor que culmina num processo instaurado pela Santa Inquisição, permeia a própria historia da Colômbia, que pude comprovar ao visitar o Museu Histórico de Cartagena, antigo Palácio da Inquisição. O Tribunal do Santo Ofício foi instalado em Cartagena em 1610. Pela importância do seu porto, que servia de entrada principal para negros escravos, comerciantes, gente de toda a parte do mundo, que traziam consigo suas culturas de “heresias e mal costumes, que atentavam contra a fé” e também para a entrada de mercadorias de todos os tipos, principalmente os livros “proibidos”, a Inquisição entrou com força nessa cidade. No Palácio, ocorriam as sessões de julgamento e se localizavam os cárceres, onde centenas de pessoas receberam martírios cruéis. Várias salas exibem ainda hoje diversos instrumentos de tortura, os mais perversos possíveis. Ao final de quase 200 anos de existência, o Tribunal de Cartagena condenou em torno de 767 pessoas, das quais cinco foram entregues às autoridades civis para serem queimadas vivas na fogueira. A expulsão definitiva dos espanhóis em 1821, em consequência da independência da Colômbia, significou também o final do tribunal nesse país.
Na sala de entrada do Museu da Inquisição, lê-se Gabo numa das paredes do recinto: “Hemos atravessado el mar-oceano para imponer la ley de Cristo, e lo hemos logrados, em las misas, em las processiones, em las fiestas patronales, pero no em las almas”, texto  do livro Do amor e outros demônios.
Visitar Cartagena, além da delícia de admirar seus monumentos na parte amuralhada, suas ruas com casas coloridas e varandas floridas, experimentar a sua culinária, onde predomina os pescados, interagir com o seu povo, alegre, musical  e festeiro, propicia-nos também uma aula de história e literatura, com os escritos de Gabriel Garcia Marques, o Gabo. Ao unir a jovem dos cabelos longos e dourados ao padre Cayetano Delaura,  em momentos de ternura e volúpia, Gabo cria uma história bem ao estilo do realismo mágico do qual ele foi mestre.  Ler, sentir, tocar e vivenciar o drama contido em Do amor e outros demônios, por si só, vale toda a viagem. (LAPD.25062018)

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