Cientista política fala sobre mudanças na legislação eleitoral
13/09/2006


Verticalização, infidelidade partidária e cláusula de barreiras são algumas das dúvidas que a cientista política e professora universitária Verônica Teixeira Marques esclarece nesta entrevista exclusiva concedida ao Portal Infonet. Aqui, ela fala sobre mudanças na campanha eleitoral, como a mini-reforma, e comenta até que ponto o horário eleitoral gratuito e as pesquisas interferem na decisão do eleitorado. Assim, o internauta poderá entender melhor o porquê, por exemplo, de o PSDB do candidato Albano Franco ter sido 'obrigado' a fazer parte da coligação do candidato a governo João Alves (PFL), da mesma forma que o PMDB teve que optar pelo PT em Sergipe.

Infonet - Muitos eleitores não entenderam as coligações feitas este ano por conta da verticalização. Você poderia explicar este novo processo e como os partidos devem se coligar?
Verônica Teixeira Marques - A regra da verticalização no processo eleitoral obriga as legendas a repetir nos Estados a aliança para a campanha nacional, ou seja, a coligação para eleição presidencial. Ela tem caráter administrativo já que serve como referência para o registro das candidaturas. Assim, os partidos que não lançaram candidato à Presidência da República não puderam se coligar com partidos que estão disputando o Palácio do Planalto. A verticalização foi instituída pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2002. A partir desse ano, entretanto, a aplicação da regra é mais rigorosa. Anteriormente, por exemplo, houve partidos que não disputaram a eleição presidencial, mas tiveram liberdade de fazer coligações diversas nos estados. Da mesma forma, partidos que se uniram em torno de um candidato a presidente puderam se dividir em duas coligações em um determinado estado.

Infonet - Alguns candidatos reclamam que o eleitor vota no indivíduo e contra a legenda, permitido a infidelidade partidária e a interferência forte do poder econômico. Qual seria a solução para este problema?
VTM - Primeiro, seria interessante que o eleitor soubesse as regras e significados a respeito do que é a legenda, o quociente eleitoral e partidário. Depois, entendesse que uma diferença entre eleições proporcionais e majoritárias. Os deputados federais, estaduais, distritais e vereadores são eleitos segundo as regras das eleições proporcionais. Diversamente do que ocorre nas eleições majoritárias (presidente e vice-presidente da República, governador e vice-governador, prefeito e vice-prefeito, e senador), nem sempre os candidatos na eleição proporcional que forem mais votados ocuparão uma vaga na Casa Legislativa. É necessário que o partido ou coligação a que pertença o candidato obtenha um número mínimo de votos, expresso por meio do quociente eleitoral. O quociente eleitoral é calculado dividindo-se o número de votos válidos, (excluídos brancos e nulos) pelo número de vagas do Estado ou da unidade da federação na própria Câmara dos Deputados. Os candidatos eleitos serão os mais votados por partidos e coligações de forma a preencher as vagas que tais agremiações obtiverem na Câmara dos Deputados, nas assembléias legislativas, na Câmara Distrital (DF) ou nas câmaras municipais. Para determinar o número de vagas a que cada partido ou coligação terá direito, são realizados dois cálculos: o do quociente eleitoral e do quociente partidário. O quociente eleitoral define os partidos e/ou coligações que terão direito a ocupar as vagas em disputa nas eleições proporcionais. Já o quociente partidário é determinado, dividindo-se pelo quociente eleitoral o número de votos válidos dados sob a mesma legenda ou coligação de legendas, desprezada a fração. Já o voto de legenda é o voto dado pelo eleitor ao número do partido, deixando de informar os dois ou três últimos números que definem o candidato. Assim, se o leitor digitar apenas os números 77, ou 88, ou 99 (número do partido), sem informar os outros dois ou três números, seu voto será válido, somando-se aos votos nominais (votos dados aos candidatos) para o cálculo dos quocientes eleitoral e partidário. Assim, tendo-se clareza desses detalhes, o eleitorado como um todo teria melhores condições de acompanhar a ideologia partidária e consequentemente escolher e fiscalizar seus representantes eleitos. Inclusive aqueles em que não votaram, mas mesmo assim são seus representantes em função das regras do jogo. Não faz diferença se você votou em alguém que não ganhou as eleições, se você votou nulo ou em branco, os representantes serão os mesmos para todos e apenas com essa consciência e de que devem ser cobrados e fiscalizados, poder-se-ia iniciar a resolução desse tipo de problema.

Infonet -Você acredita que um dos problemas das eleições do país é o grande número de partidos? A cláusula de barreira poderá ser uma solução para isso?
VTM - Não necessariamente, já que o voto do brasileiro se baseia no personalismo e não na ‘ideologia’ partidária. Entretanto, a cláusula de barreira pode fazer grande diferença na administração do país. A cláusula de barreira ameaça a existência dos pequenos partidos, já que aqueles que não obtiverem - nas eleições de outubro deste ano – 5% dos votos para deputado federal em todo o Brasil e no mínimo 2% dos votos para deputados estaduais em 9 unidades da Federação, sofrerão restrições que praticamente o alijarão do processo. Os partidos que não alcançarem os índices indicados, além da diminuição da propaganda e dos recursos financeiros, terão restrições no funcionamento parlamentar: ficarão impedidos de participar, indicar líderes ou nomear integrantes para comissões, lançar candidato aos cargos da Mesa Diretora e das Comissões Técnicas da Câmara etc. Ou seja, embora possam existir levarão uma existência muito restrita. A tendência é que os deputados eleitos por partidos que não atinjam estes percentuais mínimos deverão migrar para legendas que tenham tido bons resultados nas eleições, reduzindo o número de partidos no Congresso. Não será atrativo permanecer em um partido que terá sua atuação limitada na Câmara dos Deputados, com poucos recursos financeiros e tempo de TV. Poderá inclusive haver fusão de algumas legendas. Neste sentido, levando em conta o histórico e a vocação governista do Congresso brasileiro, cujos representantes tendem a se aproximar de partidos que fazem parte da base de apoio ao governo, a barreira eleitoral poderá facilitar a vida do próximo presidente da república, já que o número de partidos com os quais ele terá que dividir cargos e negociar as votações tem a tendência de ser menor. Sendo otimistas, os resultados da cláusula de barreira poderão contribuir para a aprovação da reforma política, que tem dificuldade de andar no Congresso por conta da pressão de partidos médios e pequenos.

Infonet - A senhora acredita que a mini-reforma feita pelo TSE, modificando as regras para as eleições deste ano, atenderam as necessidades sociais?
VTM - O que chamamos de mini-reforma eleitoral trata de: redução de gastos de campanha eleitoral e criação de novos instrumentos de controle dos recursos eleitorais. A nova lei (nº 11.300, de 10 de maio de 2006), que trouxe modificações ao texto da Lei Geral das Eleições (nº 9.504/97) instituiu, além da prestação de contas ao final da campanha eleitoral, relatórios intermediários, divulgados pela internet, nos dias 06 de agosto e 06 de setembro. Se, há por parte da população o interesse e a iniciativa de acompanhar esses relatórios, a mini-reforma já é salutar para a democracia. A nova lei também alargou o rol de entidades proibidas de contribuir para as campanhas eleitorais. Foram acrescidos os incisos VIII a XI no artigo 24 da Lei 9.504/976, estendendo a proibição, por exemplo, às entidades beneficentes e religiosas e as organizações da sociedade civil de interesse público. Um significativo avanço foi a criação de uma nova medida judicial para combater as irregularidades relacionadas a gastos e arrecadação de recursos de campanhas eleitorais. O artigo 30-A, introduzido no texto da Lei 9.504/97, possibilita a instauração de uma representação eleitoral específica para esse fim, que seguirá o procedimento previsto no artigo 22 da Lei Complementar nº 64/90 (rito da investigação judicial), e conduzirá à denegação do diploma ao candidato, ou à sua cassação, se já outorgado. Ou seja, se dá a possibilidade de cassação do diploma eleitoral, mesmo durante o exercício do mandato eletivo. A nova lei restringiu as formas de divulgação eleitoral. Foram proibidos: Confecção, utilização, distribuição por comitê, candidato, ou com a sua autorização, de camisetas, chaveiros, bonés, canetas, brindes, cestas básicas ou quaisquer outros bens ou materiais que possam proporcionar a vantagem ao eleitor (novo artigo 39, § 6º, da Lei 9.504/97). A questão mais interessante de meu ponto de vista foi a designação sobre Propaganda em bens públicos. A possibilidade uma campanha ‘limpa’ é extremamente agradável, já que postes de iluminação pública e sinalização de tráfego, viadutos, passarelas e outros equipamentos urbanos não podem ser usados para publicidade partidária. (nova redação do caput do artigo 37 da Lei 9.504/97). Entretanto, a instrução 107 do TSE permite a colocação de bonecos e de cartazes não fixos ao longo das vias públicas, desde que não dificulte o bom andamento do trânsito. É estranho ver pessoas (cabos eleitorais) segurando bonecos ou cartazes ao longo das vias públicas. Seria interessante saber o que a população acha disso... Em relação aos outdoors, a afixação de placas, em terrenos particulares, é permitida, desde que nunca tenham sido utilizadas anteriormente para fins comerciais. Interessante ressaltar uma vedação criada na ova lei: durante o período eleitoral, candidato não pode fazer caridade. Segundo o novo § 5º do artigo 23 da Lei 9.504/97, é proibido ao candidato fazer ‘doações em dinheiro, bem como de troféus, prêmios, ajudas de qualquer espécie’, a pessoas físicas ou jurídicas, desde o registro da candidatura, até a eleição. Não há sanção prevista para o descumprimento dessa vedação, bem como não há previsão de punição para as proibições de distribuição de brindes de pequeno valor (camisetas, bonés, etc.) e de realização de showmício. Seja como for, as condutas ilícitas poderão ser de pronto, sustadas pela Justiça Eleitoral, no exercício de seu poder de polícia. Poderá ainda estar configurado o abuso do poder econômico. Há sérias dúvidas, sobre a constitucionalidade – e, mesmo, a conveniência – de algumas das restrições levantadas na nova lei. Minha maior preocupação é que muitos candidatos, especialmente aqueles mais distantes das cúpulas partidárias, terão mais dificuldade de se mostrar aos eleitores, o que pode prejudicar a renovação dos quadros políticos. E renovação em democracias, é a base da soberania popular, como já dizia Rousseau.

Infonet - A atual campanha para o Governo do Estado não conta com ideologia. Como a senhora explicaria esta realidade?
VTM - Não sei se concordo com a percepção de que a campanha para o Governo do Estado não conta com ideologia. Basta verificar o grau de disputa e os grupos (alianças) envolvidos no processo. Creio que a questão mais premente é que a disputa está significativamente equilibrada, do ponto de vista do cargo majoritário estatal.

Infonet - O fim dos showmícios seria também o fim dos comícios?
VTM - Os Showmícios, ou seja, utilização, remunerada ou não, de artistas para animação de comícios foram proibidos pela mini-reforma eleitoral (novo § 7º do artigo 39 da Lei 9.504/97). Isso não significa necessariamente o fim dos comícios. Mas traz a percepção de que os candidatos mais carismáticos poderão usufruir melhor desse tipo de campanha. Note que o carisma aqui, não está sendo entendido apenas como a característica personalista, mas também com a capacidade de discursar, argumentar e empolgar os eleitores através de uma habilidade que depende de boa memória, aparência e principalmente articulação entre as particularidades de localização, circunstância e público. Ou seja, aquilo que Maquiavel identificava como virtú, algo que não se constrói, adquire-se ou inventa-se: quem nasce com ela tem condições apenas de aprimorá-la, quem não tem, titubeia.

Infonet - A senhora acredita que o horário eleitoral gratuito exerça grande influência sobre o eleitor?
VTM - No que se refere aos pleitos majoritários sim. Há situações na qual a transmissão de uma notícia, a veiculação de um dado sobre o candidato oponente feito pelo adversário, atinge proporções gigantescas que inclusive extrapolam o horário eleitoral gratuito. Quanto às eleições proporcionais, é muito mais difícil ocorrer uma mudança de interesse por parte do eleitor a partir desse instrumento. Entretanto o horário eleitoral gratuito é salutar para aquele que ainda não tem candidato e a partir da veiculação midiática, tem a chance de ‘conhecer’ as opções e assim realizar uma primeira inferência que acabará sendo alicerçada após discussões sobre os mesmos com conhecidos, familiares e pessoas de referência em sua vida particular.

Infonet - Normalmente o político que não está em boa posição nas pesquisas tende a depreciá-las e até proibi-las. Até que ponto as pesquisas influem na decisão do eleitor?
VTM - As pesquisas influenciam significativamente uma parte da população. Há uma tendência deturpada por uma parte do eleitorado, de que não vale a pena ter voto vencido. A idéia é que votar em alguém que não vai ganhar significa que é você quem está perdendo e não apenas o candidato – e ninguém gosta de ser perdedor..... Neste sentido, a mini-reforma eleitoral (que apesar de ser flagrantemente inconstitucional) proíbe a divulgação de pesquisas eleitorais nos quinze dias anteriores ao pleito, prevista no novo artigo 35-A da Lei 9.504/97. Essa medida tem a boa intenção de que o eleitor não seja influenciado pelas tendências e sim por uma escolha racional. Até que ponto isso fará diferença, perceberemos apenas quando cientistas políticos realizarem pesquisas comparativas e nacionais.

Infonet - Várias pesquisas já divulgadas apontam que o político não tem credibilidade para o brasileiro. A mudança do perfil do eleitor reflete na qualidade do parlamento?
VTM - Com certeza! Na verdade colocar em xeque a credibilidade dos nossos políticos é questionar a nossa própria credibilidade. Os políticos não são alienígenas que chegaram ao Brasil transportados em óvnis. São pessoas como você e eu. Têm família, amigos e desafetos como todos nós. Tiveram a média da educação que os brasileiros têm. O fato de estarmos sempre mais preocupados com nossos interesses privados faz-nos – erroneamente, diga-se de passagem – entender que não vale a pena fiscalizar, acompanhar e em alguns casos até lembrar em quem votamos. É difícil aceitar que ainda vote-se nulo e em branco, como se isso fosse isentar o eleitor da responsabilidade de quem foi eleito. É o parlamentar reflexo da sociedade que o elege. Neste sentido, na medida em que nos dermos conta de que só garantimos o nosso interesse privado, como reflexo do interesse público, coletivo, seremos eleitores mais habilidosos para eleger um parlamento mais qualificado.

* Verônica Teixeira Marques, aluna do Doutorado em Ciências Sociais pela UFBA, Mestre em Ciências Políticas pela UFPE, Bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela UFS, atualmente é  professora de Política e Sociologia na UFS.

Por Raquel Almeida