AS VÍTIMAS DOS MEIOS ILÍCITOS

O passado tem o salutar costume de passear de mãos dadas com o presente, especialmente quando caminham na passarela da reflexão. Esclareço melhor este exótico passeio: sempre que um fato atual se apresenta diante dos nossos olhos, fatos semelhantes ocorridos no passado surgem fotograficamente em nossa mente, permitindo-nos o exercício da comparação.

Mesmo quando a lembrança do passado surge de forma ilógica, até porque ninguém tem o dom de regrar o libertário pensamento, o exercício da comparação se torna fator importante como elemento decisório, principalmente para que não se repitam erros anteriormente cometidos.

Este passear reflexivo aconteceu comigo nesta semana, mais precisamente no momento em que a imprensa noticiou que eram sabidamente falsas as provas apresentadas como justificativa para a invasão do Iraque. Descobriu-se agora que os serviços secretos estadunidenses e ingleses, conscientemente, manipularam os seus respectivos relatórios, fazendo constar que existiam armas químicas e de destruição em massa no arsenal bélico do foragido Saddam Hussein. Sabendo-se que era difícil convencer sobre a justeza de uma invasão apenas com respaldo na insana “guerra santa contra os árabes-terroristas”, foi criado o ardil como forte instrumento de propaganda para consumo eleitoral interno, onde, de quebra, seriam os invasores transformados em paladinos da liberdade.

A lógica argumentativa “bushiana”, onde os meios ilícitos podem ser utilizados para justificar fins ilícitos, me fez lembrar de um episódio pretérito em que a vida humana foi transformada uma pequena e incômoda pedra, como aquelas encontradas nas botas texanas do presidente dos EUA. Não sei o quanto estou forçando a barra ao estabelecer o paralelo, mas ligo se assim for acusado, até porque não sou adepto do pensamento métrico, regrado e servil. O fato apontado como paradigma ocorrera no ano de 1985, na cidade de Malhada dos Bois, época em que eu iniciava a maratona que se tornou a minha profissão de advogado.

Eu estava esperando começar a audiência trabalhista que me fizera comparecer àquela cidade do interior sergipano, quando o gesto solidário de um empregador chamou a minha atenção para o que ocorria naquela sala. Imediatamente irrompi a conversa que travava com a então promotora pública Fátima Barros, dedicando-me a ouvir os argumentos do empregador. Ele explicava à juíza, ante a ausência da parte contrária na audiência, que poderia esperar o seu queixoso ex-empregado, até porque ele tinha sido um ótimo trabalhador.

Dizia ele que seria injusto arquivar o processo, o que ocorreria se confirmada a ausência do empregado, pois pretendia conciliar e pagar ao reclamante os direitos postulados.

Somente após trinta minutos de inútil espera é que o processo fora arquivado. Lembro-me que durante a minha audiência comentei o bonito gesto do empregador do processo anterior, inclusive ressaltando que ele contribuíra para amenizar a minha então extremada visão sobre a classe patronal.

Dois dias depois, não lembro quem me deu a notícia, soube que o bondoso empregador na verdade havia assassinado o seu empregado antes da audiência, comparecendo friamente ao fórum em busca de um confiável álibi. Nós fomos vítimas de sua cruel e calculista ação, reforçada pela certeza de uma futura impunidade. Tudo não passava de um estudado ardil, onde o gesto solidário fora utilizado como mera e falsa propaganda de convencimento.

Não se pode negar que, nos dois casos, o ardil fora utilizado de forma planejada e consciente, sem que os seus autores apresentassem quaisquer resquícios de remorsos ou compaixão pelas mortes causadas por suas respectivas ações. Na arrogante lógica dos amantes da força bruta não há diferença entre os meios e os fins na conquista do objeto cobiçado, pois o que realmente lhes importa é conseguir, conseguir e conseguir o objeto do desejo. A história da humanidade está recheada de outros casos idênticos, o assassinato do deputado Joaldo Barbosa também poderia ser citado como referência comparativa do que estou aqui a afirmar.

Vidas humanas, razões morais, intenções democráticas, justiça, amor, respeito, dignidade, dentre outros aspectos éticos e humanitários, são elementos que podem ser utilizados ou não, desde que sirvam à captura do objeto cobiçado. Mas se é assim, não podemos ser complacentes com aqueles que se utilizam do ardil e da mentira como instrumentos de ascensão e conquista, sob pena de sermos transformados em potenciais vítimas. É o passado quem nos ensina que denunciar, não conviver e coibir os meios ilícitos é questão de sobrevivência.

(*) Cezar Brito é advogado, conselheiro Federal da OAB e presidente da Sociedade Semear.
cezarbritto@infonet.com.br

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