O São João na Estância
Ofenísia Soares Freire

Chantada em uma colina e abençoada por Deus, ergue-se ao sul do Estado de Sergipe a cidade da Estância que, entre outros títulos que ostenta. figura o de ser onde se realiza o melhor São João do Brasil.

Os festejos de São João têm início nos primeiros momentos de junho: com a salva. Logo que soam as doze badaladas da meia-noite no velho e sonoro relógio da vetusta Matriz, hoje Catedral Diocesana, bimbalham os sinos, espoucam foguetes, girândolas estouram no ar e vozes de todos os cantos bradam:

"Acorda, João!" É a salva de São João, a zero hora de 31 de maio, é o sinal de regozijo pela presença espiritual do precursor do Messias, do São João do cordeirinho, o louvor do povo da Estância em honra do Batista, daquele que batizou Jesus no rio Jordão.

E daí em diante, por todo o mês de junho até 29, dia de São Pedro, o chaveiro do céu, a Estância se transforma em um imenso palco fora e dentro das casas para a encenação dos ritos tradicionais que assinalam os festejos juninos, cujo apogeu se dá na véspera e nos dias 23 e 24.

Na madrugada fria da salva, enquanto os sinos tocam e busca-pés rabeiam, hasteia-se a bandeira de São João em frente à Catedral Diocesana. E qual um mensageiro de sonhos e aspirações estancianas, o barco de fogo, impulsionado por foguetes e retrofoguetes, corre num arame esticado sob os aplausos dos presentes. É uma cena eclética, religiosa e pagã. As comemorações em louvor a João Batista são manifestações do culto popular nos países católicos e greco-ortodoxos. Têm desse modo um espaço muito amplo de ação, mas na Estância revelam algo muito especial que reflete o espírito hospitaleiro de seus habitantes na maneira como se reveste de gentileza e

graça. Os festejos de São João têm a característica de unir todos, é manifestação coletiva que não pertence a este ou àquele bairro, é da urbe inteira e estende-se a quantos a visitam.

Há outros Santos festejados em junho: Santo Antônio, São Pedro e São Paulo, o qual só aparece no batismo na fogueira. No dia 1 ° de junho tem início a trezena de Santo Antônio, o santo casamenteiro das moças, vale a ressalva porque o santo protetor das velhas e das viúvas é São Gonçalo do Amarante. São treze noites de reza, e no Asilo Santo Antônio, perto da ponte do Bonfim com seus três arcos bem dimensionados e seu gradil de ferro, debruçada sobre o rio Piauitinga, reuniam-se as pessoas para rezar, mas rapazes e moças, principalmente, para namorar. As rezas também se faziam nos oratórios de residências particulares, e era costume naqueles tempos as moças tomarem emprestado o menino Jesus que Santo Antônio traz nos braços para o prenderem na bainha da saia, só retirando-o no dia 13, depois da última noite da trezena. Usava-se também visitar treze oratórios onde houvesse Santo Antônio de Pádua, para arranjar casamento. Hoje, o milagroso franciscano perdeu muito a clientela, não por demérito, mas porque a maioria das jovens está preferindo pedir emprego. De um modo geral, casamento, para a mulher, deixou de ser amparo, porto de salvação. No dia 15 começa a novena de São João na igreja do Botequim. Na sala de frente de algumas residências, rezava-se também a novena de São João, com o oratório luzindo de velas e enfeitado de flores. Na última noite, a cidade era toda inteira um palco luminoso, com as fogueiras estalejando em frente a cada casa e os foguetes espoucando no ar a cada minuto.

Antes mesmo de junho começam os preparativos: na calada da noite, ouve-se o batuque cadenciado do Pisa-pólvora, acompanhado de cantos especiais, na fabricação dos busca-pés, para as futuras batalhas, em que os batalhões se defrontam em combates perigosos. O ziguezaguear dos busca-pés é um espetáculo belíssimo pelo seu fulgor dentro da noite junina, mas pode causar queimaduras e mutilações a que, infelizmente, estão expostos aqueles que o proporcionam.

Na véspera e no dia de São João acendem-se as fogueiras (hoje ela são mais limitadas), não em lugar programado como agora, mas à frente de todas as casas, umas com mastro, outras sem ele, fogueiras pequenas, médias e grandes, como aquela da rua da Miranga, feita com uma carrada de lenha na véspera e outra no dia, vindas do engenho em carro-de-boi. Nas fogueiras acendiam-se fogos e assava-se batata-doce. Busca-pés, espadas, pitus, vulcões luziam e estalejavam proporcionando um espetáculo fantasmagórico, tendo o clarão das fogueiras como moldura incandescente

E quando delas restava somente o braseiro rente ao chão, era c momento de se realizarem os batizados, de se aproximarem as pessoas afetivamente. Dava cada pessoa a mão direita por cima da fogueira, dizendo:

"Juro por São João
São Pedro e São Paulo
Que fulana vai ser
Minha madrinha."

Depois, pulava-se a fogueira pra lá e pra cá. E assim surgiam as comadres, os compadres, afilhados e afilhadas. Foi desse modo que tive por padrinho João Lima da Silveira (Capitão), o intérprete da alma estanciana, com sua oratória brilhante e Madrinha Marocas (filha do venerando Hugolino Azevedo, "o tio Gole", imortalizado nas "Memórias da Infância" de Gilberto Amado).

As fogueiras são de origem européia e foram introduzidas no Brasil pelos colonos portugueses desde o século do descobrimento, como se pode ver na História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador. Diz o povo que o costume de acender fogueira recorda que Santa Isabel, mãe de São João Batista, acendeu para anunciar à Virgem Maria, sua prima, o nascimento do filho, conforme Ihe prometera. Assim, o nascimento de João Batista foi anunciado com fumaça, labaredas e um mastro.

O HAGIOLÓGIO JOANINO

A Bíblia apresenta vários Joãos, dos quais me refiro a três: João, irmão de Tiago e filho de Zebedeu, pai e filhos pescadores no mar da Galiléia. Foi depois, como Tiago, apóstolo de Cristo, o discípulo amado, que na última ceia ocupou o lugar mais próximo de Jesus. É chamado São João Apóstolo e São João Evangelista, por haver escrito o quarto evangelho. Foi ele que, exilado na ilha de Patmos, escreveu o Apocalipse. Há, também, São João Marcos, o autor do segundo evangelho, mais conhecido pelo seu sobrenome romano, Marcos. O evangelho de São Marcos registra a vida e os ensinamentos de Jesus, como foram narrados por São Pedro. E, ainda, São João Batista, precursor de Nosso Senhor, filho de Zacarias e Isabel. Seu nome aparece no Confiteor e no Canon da missa. A igreja celebra-o com duas festas, uma a 24 de junho, a data tradicional de seu nascimento e a outra a 29 de agosto, comemoração de seu martí rio, pois foi degolado a mando de Herodes Antipas, sendo sua cabeça entregue num prato a Salomé, filha de Herodíades. João Batista pregou no deserto da Judéia e batizou Jesus no rio Jordão.

O SÃO JOÃO E O MILHO

Como as festas pagãs de antigüidade, o São João tem muito a ver com a seara e a colheita. Para que haja fartura no São João, para que os

roçados se apresentem cheios de milho apendoando, é preciso que ele seja plantado no tempo certo. Em março, o estanciano aguarda a chuva no dia de São José, 19, para que fertilize o ventre da mãe terra, e a semente nele lançado possa medrar. As águas de março tornam-se indispensáveis à semeadura do milho.

Nos quintais, nos sítios e roçados fazem-se as covas: três grãos em cada uma. Daí a alguns meses, em fileira se vê o glauco milharal, onde as louras espigas ostentam ao sol as ruivas cabeleiras. Não há sítio ou quintal. qualquer espaço por menor que seja, onde não se plante milho a partir de março. Naqueles sítios dos arredores da Estância, no Botequim, nas Alagoas, no Cajueiro e quantos mais, em meio aos pés de murici, maçaranduba, mangaba, araçá-congonha, araçá-peito-de-moça, vicejam em junho os pés-de-milho com os pendões inclinados e estigmas esvoaçantes.

Com certeza, o ciclo junino no que se refere a seus santos e comidas típicas, não se restringe ao mês de junho, vem desde o mês de março com a plantação do milho, e o primeiro santo do ciclo é o casto esposo da Virgem Maria, São José, o santo que traz as águas de março para a lavoura da gramínea. É preciso também plantá-lo em mais de uma etapa, pois carece o milho mais tenro para ser cozido ou assado, o mais consistente para o mungunzá, a canjica, o manauê, a pamonha; para a pipoca, xerém e fubá, pode estar maduro e, se for preciso, ficará de molho, para o cuscuz. Na Estância, cidade hospitaleira onde, segundo Jorge Amado, vive "o povo mais cordial do mundo", as casas e sobrados recebem a visita de quantos neles desejem entrar, para saborear a delícia desses pratos típicos citados, a que se juntam a famosa maniçoba, o bolo de puba e o de macaxeira, os quais no mês de junho enchem a mesa de ponta a ponta. (Era assim no meu tempo de jovem). Naquele tempo era só entrar, e as pessoas de casa sentiam-se lisongeadas com a visita.

O milho é motivo lúdico, são freqüentes as brincadeiras. Por exemplo: quando alguém acaba de comer milho assado e quer enganar outro, segura escondido o capuco e chama: - Fulano!

O outro, que está distraído, responde: - O que é?

O que chamou joga com força o capuco no chão e grita: -"Gluebrei a cabeça de sua vó!" E dispara na carreira, antes que o agredido o alcance com um tabefe.

Antes de junho, são preparados em casa os famosos licores de jenipapo, de murici, de jaboticaba, de mangaba, de maracujá e até de leite, saborosíssimos. O mais típico do São João da Estância é o licor de jenipapo. D. Zizi afirma com segurança: "O verdadeiro licor leva quatorze jenipapos (se forem grandes, dez chegam) para cada garrafa de cachaça." Na ocasião de filtrar, usa-se papel filtro e algodão no funil que se acopla ao

garrafão, onde o licor vai caindo gota a gota, finíssimo, transparente. Depois é só colocar as garrafinhas enfileiradas sobre a étagère e a cristaleira e aguardar as visitas para servir.

* * *

Ao refletir no São João da Estância, surge logo a questão: o de hoje ou o de ontem? Sim, porque vivemos sempre à mercê das mudanças. Parodiando Machado de Assis em sua reflexão acerca do Natal, eu me pergunto: "Mudaria o São João ou mudei eu?" Ambos mudamos. Mais fácil é lembrar o São João de antigamente, através da reminiscência, evocando aqueles folguedos tradicionais que se realizavam espontaneamente, sem programação, mas a que não faltavam novena, dança, fogueira, balões, fogos e adivinhações. Depois da novena vinham as danças. Casa onde houvesse piano ou vitrola, ou onde pudesse entrar um "cisco" da Lira, era ponto certo para um baile, uma dança animada. Às vezes, a moçada entrava para fugir dos pitus e busca-pés que eles mesmos acendiam nas fogueiras: pretexto para improvisar os chamados "assustados", isto é, danças que os donos da casa não previam. Dançava-se em casa de Dr. Jessé, que gostava muito de dançar, no Vitória Hotel, de Juca Nunes, sempre alegre e cortês, no sobrado de João Pereira e em outras residências. Além do pulo na fogueira, havia as adivinhações de toda a espécie, como a de enfiar a faca na bananeira para ver o nome do futuro noivo. Será que hoje ainda se usa essas brincadeiras singelas?

São Pedro encerra os festejos juninos. As viúvas acendem fogueiras à frente de suas casas. Há o casamento caipira, que pode ser também o casamento da viúva. A noiva com as companheiras de vestido de chita cheio de babados e rendas, em carro-de-boi todo enfeitado desfilando pelas ruas, enquanto atrás vem o noivo com o acompanhamento, todos a cavalo e vestidos a caráter, de roupa de tororó. Alguma coisa há de haver mudado nos festejos juninos, como, por exemplo, a ausência dos balões tão românticos, imortalizados no cancioneiro popular, mas, realmente, causadores de incêndios. Porém o São João continua a ser festejado anualmente na Estância, tendo atualmente a procissão na véspera, com a imagem de São João saindo da Igreja do Botequim para a Catedral Diocesana com a participação de grupos folclóricos, seguindo-se a bênção da fogueira ao lado da Catedral. Durante todo o mês de junho há muitas festividades, como festivais de música, corrida da fogueira, corrida de barco de fogo em vários lugares (antigamente era só na rua da Miranga), leilões, quadrilhas, quebra-potes, corrida de saco. O sanfoneiro tem papel preponderante no São João com a sua participação indispensável nos forrós.

Sem dúvida o São João é a festa mais tradicional da Estância e convém preservá-la, guardando-lhe os valores culturais. Mas também

poderá haver inovações que tragam para o povo meios de participação mais efetiva. Seria de bom alvitre reservar um largo, uma praça, um local ao ar livre, enfim, somente para danças, onde se pudesse brincar, dançar, sem medo dos busca-pés. Tal providência só poderia aumentar a confraternização que é a tônica do São João estanciano. A Secretaria de Estado da Cultura, órgão, que, juntamente com a EMSETUR, tanto se interessa pela realização e preservação das festas juninas na Estância, é que melhor poderia opinar sobre c assunto.

Na Enciclopédia Brasileira Mérito, há esse registro acerca da festa de São João:

"Durante muito tempo acreditou-se que as comemorações de São João fossem reminiscências do culto de alguma divindade solar, mas atualmente prevalece a opinião de que se trata de uma reminiscência de ritos agrestes de purificação, profilaxia e propiciação. Em alguns países nórdicos, as festividades de São João estão mescladas de elementos evidentemente pagãos. A Igreja Católica tem procurado incorporar tais festejos a seu ritual, com procissões, benção dos fogos e das fontes etc."

 

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