Rua São João
"UMA HISTORIA VIVA NA MEMORIA CULTURAL
DE SERGlPE"
Texto: Aglaé Fontes de Alencar.
Completa a rua São João com seus festejos voltados para o santo mais conhecido do Ciclo Junino, 80 anos de vida.
A permanência de um festejo durante 80 anos já diz, por si só, da sua importância.
Ele já se basta a si mesmo, carreando respeito não só pela tradicionalidade como pela história cultural que simboliza.
A festa, no início, esteve completamente voltada para a religiosidade, louvando a São João de Deus.
Embora tenha aos poucos se modificado, integrando ao religioso 0 lado festivo do povo, com suas danças, cantos e alimentação junina, não deixou, segundo os antigos, de receber as bênçãos do santo que continua olhando pela rua que tem seu nome, para que os festejos não desapareçam nunca.
No início todos os moradores iam para a novena que durante o mês de junho era rezada na casa de duas velhinhas que moravam num sítio na região chamada "Matinha dos Caboclos", hoje de propriedade do Dr. Augusto Franco. As duas irmãs tinham uma imagem de São João que elas chamavam de São João de Deus. Aí foi o começo de tudo.
A novena terminava no dia de São João com uma procissão, na qual todos os moradores tomavam parte. Não só os que moravam na rua São João mas até os que vinham da Fonte Grande e do Engenho Novo que ficava acima do Manuel Preto. no bairro Santo Antônio.
A rua de São João nos idos de 1910 não tinha calçamento e as casas eram de palha, sendo seus moradores pessoas humildes na sua grande maioria.
Encravada na ladeira do bairro Santo Antônio, a rua recebeu o nome de São João justamente pela presença do louvor ao santo que através das novenas e procissões se faziam no período junino.
Após a novena e a procissão, os moradores, chefiados pelo "seu" Leobino faziam outra festa. Os vizinhos se presenteavam com comida, as fogueiras eram acesas e a conversa varava noite adentro.
A comunidade sabia bem dosar as coisas naquela época. Não faltavam para completaro clima religioso, a alegria na rua com a presença das bandeirolas feitas com papel manilha, as fogueiras votivas ao santo e as comidas típicas que iam passando de casa em casa, entre os amigos.
Tudo era dividido entre os moradores: das tarefas às comidas
Uns cortavam bandeirolas, outros faziam goma de tapioca, que passada no cordão esticado permitia que várias mãos fossem pregando as bandeiras para depois o cordão ser suspenso na rua.
Embora as casas fossem de palha, o chão de areia, e não houvesse ainda luz elétrica, nada impedia que a festa se realizasse e que houvesse um clima de alegria e felicidade, tendo na figura de São João seu maior significado. A festa era para o santo.
A rua se preparava para louvar o santo.
Candeeiros tremulando nas casas, vozes entoando Ave Marias, fogueiras queimando e por vezes a chuva fininha caindo, davam a impressão que aquela era uma rua mágica, diferente, porque estava carregada dos sonhos e da fé dos que nela moravam.
Rua onde se festejava o São João!
Rua de novena de São João de Deus!
Rua de SÃO JOÃO!
O nome pegou. A fé permaneceu.
E a festa ficou até hoje, carregada de história, com seus 84 anos de vida.
"Aqui tinha mais casa de palha.
Só tinha poucas "casinhas" de telha.
A minha casa mesmo, era de palha.
Foi onde nasci . . . Muito querida . . .
Ainda hoje eu sinto saudade da minha casa de palha . . ."
D. Detinha - moradora da rua
São João.
69 anos
Quando as duas irmãs foram envelhecendo a comemoração do santo não pôde mais parar porque na verdade, já pertencia ao povo
Foi então escolhida a primeira Comissão, formada pelos moradores da rua para organizar os festejos no ano de 1910:
Presidente: LEOBINO MOURA
Vice-Presidente: MARIA TERTA SOARES
Tesoureiro: JOSÉ SOARES DA CRUZ ("Seu" José Soares
da Cruz era conhecido como "Zeca Soares")
Conselho Fiscal: ANTÔNIO PEDRO e JOSÉ ROZENDO .
A festa continuou sempre voltada para o caráter religioso.
Mas todos ajudando. Quando as duas irmãs faleceram e depois que o sítio foi comprado, dizem os antigos moradores que a imagem de São João de Deus foi para Igreja do Caiçá (Segundo D. Detinha, moradora da rua São João desde 1950, a igreja pertenceu à família Cruz: João Cruz, Eduardo Cruz e hoje pertence à família Franco, ficando na fábrica SERGIPE INDUSTRIAL, no bairro Industrial), que nesse período pertencia à família Cruz.
A colocação de um mastro em louvor ao santo começou também a se integrar às festividades.
Na noite de 31 de maio para 1° de junho, o mastro era tirado de uma mata. Antigamente era tirado do Manuel Preto, que ficava bem perto da rua São João.
"Depois nós passamos a tirar este mastro, a fazer o corte, nas matas do Ibura, que hoje em dia pertence ao IBDF. Depois o IBDF não permitindo mais o desmatamento, nós passamos a tirar no bairro Santo Antônio . . . "
Sr. Antônio Soares
Diretor da São João de Deus
O mastro era colocado em um ano e só era retirado no outro, para ser substituído por um mastro novo. A festa para os santos fora o período da novena, tinha a duração de quatro dias: 23 e 24 - São João e 28 e 29 - São Pedro.
Sobre o mastro da rua São João, Luizélia (Luizélia é moradora da da São João), tem muita coisa para contar, pois ainda menina chegou à rua de São João, e mora na rua até hoje, quando já tem 46 anos. Pelo seu depoimento, pode-se perceber algumas mudanças trazidas pelo tempo.
"Primeiro tinha a troca do mastro.
Era no dia 31 de maio para 1º de junho e tinha aquela fofoca toda. O Capitão
(O Capitão era João José, da Polícia Militar, proprietário dos terrenos da Cidade
Nova) dava o mastro, o pessoal ia apanhar.
Traziam no caminhão. Chegavam aí na entrada, que era um bequinho e ali arriava.
O mastro ficava.
Então os moradores cantando, tocando samba. Aquele "seu' Ouendera vinha
pra aqui e começava aquele pife a tocar, a zabumba a bater . . .
Zé Cavaquinho que morava no Aracajuzinho tocava . . .
Então eu sei que vinha aquele pessoal cantando, gritando, cantando música de
São João: "Olha pro céu meu amor". Aquela brincadeira . . lá vinha
todo mundo junto com aquele mastro que tava no bequinho.
Aí, parava, tomava licor de jenipapo, licor de maracujá, às vezes também vinho
mesmo de jenipapo, jurubeba, o que tivesse.
A cachaça mesmo. Então continuava até chegar lá em cima (onde hoje é o quadrilhódromo).
Quando chegava lá em cima, já estava tirado o outro mastro.
Aí ficava aguardando. Ouando era dez para meia noite começava:
- Amarre a corda!
- Puxe a corda pra aqui!
Quando era meia-noite em ponto, o mastro estava levantado. E "seu"
Ouendera tocando".
Luizélia.
Com a dificuldade cada vez mais crescente de conseguir mastro para cortar, os moradores às vezes passavam por momentos da angústia quando a chegada do mastro demorava.
" . . . teve uma vez que meu marido foi
apanhar o mastro e o caminhão atolou que foi um sufoco.
Que o mastro era pra chegar cedo e chegou nesse ano bem tarde... "
Luizélia.
"Mas quanto mais sofrimento, mas tinha alegria".
D. Detinha.
Quando "seu" Leobino Moura faleceu o festejo da rua São João já estava definido e seus seguidores continuaram o trabalho iniciado.
Dentre eles estava seu filho, José Alves de Moura. que foi escolhido como Presidente da 2ª Comissão, formada em 1946.
Nesse período o festejo já apresentava além do aspecto religioso, com novena e procissão, um nítido crescimento profano com danças e comida típica.
A ornamentação era dividida em dois grupos: a parte de cima e a parte de baixo da rua. Cada grupo caprichava mais no trabalho. Mas era uma competição sadia, sem brigas, só pra ver qual ficava mais bonita.
Não havia ainda a apresentação de quadrilhas e o costume era após a procissão, dançar nas casas o samba, que era uma espécie de coco de parelha.
"Não tinha quadrilha não. Era samba nas
casas particulares. Fazia samba de "pareia" boa. Eu dancei muito.
Samba assim solto, que se chamava: samba de zabumba, com muita zabumba.
Os moradores todos unidos, muito unidos. Tudo fazendo suas festinhas, arrumando
as frentes das casas com bandeira, com fogueira, mastro . . . "
D. Detinha
O coco era tão animado que às vezes, ao fim da noite, ou se quebrava o tamanco ou o tijolo da casa.
Os fogos também animavam o festejo.
Foguetes de flecha, como se faziam antigamente, estouravam louvando os santos juninos.
Depois, quando a rua começou a mudar de cara, com as casas de palha sendo substituídas por casas de alvenaria e telha, com as ruas abertas e indenizados seus moradores, começavam a surgir para morar na rua pessoas com melhor poder aquisitivo.
Aí mudou a feição do São João. Os foguetes simples, as bombas de breu, os busca-pés abriam caminho para as disputas de fogos entre o Sr. Antônio Costa e Sr. Francisco ou Sr. Izaías que eram negociantes e sempre guardavam um recursozinho para alegrar a festa, com fogos de artifício.
Mais uma vez nos valemos do depoimento de D. Detinha:
"Ave-Maria, era uns fogos lindos, lindo.
Fogos de clarear a rua.
Fogos caríssimos. Mas aí era coisa de morador. Era do morador que tinha recurso.
Era Antônio Costa, "seu" Izaías e "seu" Francisco.
Eles negociavam, então um não queria ficar atrás do outro, né?"
Se um comprava fogos bonitos os outros compravam muito mais. O resultado era uma disputa de fogos que encantava os moradores que se dividiam no julgamento. Ora torciam por um, ora por outro.
Não se pode negar aqui outro aspecto importante do festejo junino desse período: a união.
Todos cortavam bandeirolas, enfeitavam a rua, cada um dando uma colaboração para a festa, ou em dinheiro ou com trabalho.
Ninguém ficava de fora, sendo muito comum ao final da colocação das bandeirolas que alguém aparecesse com uma panela de arroz ou mungunzá ou mesmo moqueca de arraia para distribuir com todos que até altas horas da noite trabalhavam. Isso sem falar no vinho ou no licor de jenipapo, na jurubeba ou mesmo a cana branquinha.
Na verdade era uma grande família.
Com suas diferenças mas com profunda união em torno do louvor a São João.
A única disputa que havia era entre a parte de cima da rua e a parte de baixo. Cada lado caprichava em fazer a decoração mais bonita para que São João ficasse mais orgulhoso do trabalho dos que o louvavam.
Isto mesmo acontecia com o Concurso de traje caipira. O Concurso, na verdade, nada tinha de rígido. Era mais uma brincadeira que foi se incorporando às atividades juninas. Não era competição de traje, no sentido do aparato e riqueza, e sim de originalidade
"Quem julgava era o próprio pessoal da rua São João. Então eram escolhidos aqueles de maior conhecimento do que era uma roupa caipira e se escolhia os jurados em número de cinco pra não haver empate. Quem perdia ou ganhava, os comentários ficavam por ali mesmo e ninguém ia procurar discutir, nem procurar briga, ofender um ao outro, de forma nenhuma. Era muito amigável."
Sr. Antônio Freitas
Presidente dos Festejos, durante 16 anos.
Dentre os antigos organizadores dos festejos, ninguém deixa de se referir a este espírito de união que animava a rua São João durante o desenvolvimento dos festejos.
Dona Bernadete Teles Magalhães, conhecida como D. Detinha, nasceu e se criou na rua de São João, onde reside até hoje, estando com 69 anos de idade.
Ela conta que, quando era Presidente da Comissão Organizadora o Sr. José Alves de Moura, filho do Sr. Leobino, a procissão de São João era acompanhada também pela Lira Sergipana e Lira Santo Antônio.
Eram espécies de blocos. A Sergipana era do Sr. José Alves de Moura e se vestia de vermelho e branco; e a Santo Antônio se vestia de azul e branco, e pertencia ao Sr. Antônio Costa.
Cada grupo tinha uma porta-bandeira que levava o estandarte de São João.
O estandarte era um laquê, nas cores do grupo e trazia sempre a imagem do santo como adulto ou como criança, segurando o carneirinho.
Voltamos aí nesses Blocos ou Liras, a toda uma influência portuguesa do azul e encarnado, presentes nos nossos Reisados.
Não faltava junto às Liras, a presença da Zabumba, sendo o Mestre Quendera com seu terno de Zabumba, o tocador permanente da procissão.
As moças que formavam os dois blocos usavam roupas de babados, fitas, renda sobre laquê azul ou encarnado, as cores dos blocos.
Segundo informações de D. Detinha, as pessoas ajudavam na confecção das roupas, sendo D. Terta, que tomou parte na 1 á Comissão, uma das pessoas que costurava os trajes da Lira Sergipana.
Mas o traje não era caipira.
O Sr. Antônio Osório de Matos, residente no bairro Industrial fez referência quando entrevistado, à existência, já na década de 40, de um Bloco que pertencia a um senhor Salvador, formado por homens vestidos de calças brancas e camisas vermelhas, com chapéus de palha enfeitados a gosto com fitas e papel colorido, que saía pelas ruas levando à frente um estandarte de São João do Carneirinho.
O grupo parava em algumas casa onde dançava, bebia e não deixava também de soltar fogos em louvor a São João.