Uma dolorosa lembrança

     

O legendário médico argentino Fortunato Banaim, ao meu lado direito.

Era um fim de  tarde igual a todos os outros na cidade de Niterói. A data: 17 de dezembro de 1961. Estava por vir uma das maiores tragédias da história do Brasil. Um ex-funcionário do circo Gran Circus Norte-Americano, contrariado com a sua demissão e,  num gesto insano, ateia fogo na lona pelo lado de fora da estrutura e, em poucos minutos, toda a estrutura arde em chamas, deixando um saldo de 317 mortos, 500 feridos e uma centena de mutilados, a maioria crianças. 
     Espetáculos circenses estavam em grande moda àquela época, praticamente era a única forma de lazer, uma diversão pouco dispendiosa, arrastando multidões e levando alegria à vida de milhares de adultos e crianças. Mas naquele dia, infelizmente, foi diferente.
    O Gran Circus Norte-Americano havia estreado em Niterói dois dias antes, instalando-se na Praça Expedicionário, no centro da cidade, que não mais existe nos dias de hoje. Diziam os anúncios de jornais que era o maior e mais completo circo da América Latina, com cerca de sessenta artistas, vinte empregados e cento e cinquenta animais. O dono do circo, Danilo Stevanovich, comprara uma lona nova, que pesava seis toneladas, toda de náilon, uma novidade e um detalhe que fazia parte da propaganda do circo. Os niteroienses teriam um natal glorioso.
     Final da tarde, todos extasiados com o espetáculo, as crianças comendo pipoca,  acompanhadas dos pais, a grande tragédia estava por vir.  Com três mil pessoas na plateia, faltavam apenas vinte minutos para o espetáculo acabar, com o salto mortal do trapezista, quando ele percebe do alto o incêndio. Em três minutos, o toldo, em chamas, desaba sobre a platéia. Em pânico, assustada ainda com o caos instalado e com a reação dos animais (inclusive leões), a multidão tenta escapar pelo portão principal, na forma de um túnel e muitos morrem pisoteados. Todas as outras saídas estavam obstruídas.
     Reina-se a confusão generalizada. Os sobreviventes, com queimaduras gravíssimas, começam a ser levados para o hospital Antonio Pedro e muitos deles são atendidos em bancos de praça.  O Rio se mobiliza, de toda parte começa a chegar ajuda humanitária. Os Estados Unidos fornecem 300 metros quadrados de pele humana congelada para ser usada no tratamento das vítimas. Outros países enviam plasma e albumina humanas, as pessoas fazem fila para doar sangue. Uma comoção generalizada.
     O Brasil, à época, não dispunha de serviços especializados para o atendimento de queimados. É aí que entra o trabalho de abnegados médicos patrícios  e seus colegas argentinos, liderados pelo Dr. Fortunato Benaim (foto). Ele traz cinco outros cinco assistentes, vários enfermeiros e materiais necessários do Hospital de Los Ninos, de sua cidade, Buenos Aires e com o colega brasileiro, Ivo Pitanguy,  dão  o melhor tratamento possível para as inúmeras vítimas graves daquele sinistro. O trabalho desse grupo obtém o reconhecimento mundial e termina por projetar internacionalmente o eminente cirurgião  brasileiro. Ele e uma equipe de 15 médicos voluntários dedicam-se, durante meses, ao tratamento das vítimas, através de cirurgias reparadoras e estéticas.
     Como ocorre nas grandes tragédias, não deixa de haver o lado místico. Comovido com a tragédia de Niterói, o empresário do setor de transportes do Rio José Datrino, vê a queima do circo como uma metáfora do incêndio do mundo e sente-se compelido a abandonar o seu lado material e a se dedicar apenas ao espiritual. Nasce assim o profeta Gentileza. No local do  incêndio,  tempos depois, ele constrói um belo jardim e permanece levando ao próximo os seus ideais de gentileza e paz, peregrinando pelas ruas de Niterói e do Rio de Janeiro, ( …”gentileza gera gentileza”, dizia ele …)
        Passados 50 anos de terrível tragédia, os confrades que compõem a Academia de Medicina do Rio de Janeiro resolveram homenagear os heróis de 61, mais precisamente os doutores Ivo Pitanguy e Fortunato Benaim, hoje membro emérito da Academia de Medicina de Buenos Aires, em emocionada solenidade que aconteceu  em 10 de maio de 2011, na cidade de Niterói, com a participação da Federação Brasileira de Academias de Medicina e do Conselho Federal de Medicina. Tive a felicidade de estar presente nesse momento mágico e de extrema luminosidade, lado a lado com o professor Benaim.
      Fortunato Benaim era um dos poucos especialistas mundiais em queimados, à época, quando veio prestar esse grande gesto de solidariedade humana ao povo brasileiro, trazendo ainda a sua equipe a Niterói para socorrer às vítimas da tragédia. No entanto, ao contrário do cirurgião plástico brasileiro, o argentino nunca havia recebido um agradecimento brasileiro oficial.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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