Um dia daqueles de festa. Lembro-me bem. A roupa branca, o sapato engraxado brilhando, que mais parecia um lustre. Todos de camisas com bolinhas azuis, brilhantina no cabelo e o sino da Catedral Metropolitana tocando. Uma multidão pelas ruas. Pipoca Lírio do Vale, outras de todas as cores, algodão doce, bolinhas de sabão pelos ares, a praça movimentada com o Carrossel do Tobias, Chapeuzinho Vermelho sendo apresentado na praça. Senhoras do Sagrado Coração de Maria, Dona Lucinda Nascimento, zeladora do altar há 70 anos e Nosso Senhor Bom Jesus dos Navegantes no andar. A praça repleta. As crianças de Dona Anete vão na frente, as de Dona Quinha atrás. – Esta negra é perigosíssima – disse D. Quinha para D. Lucinda. – Deixe de preconceito. Respeite o santo – disse Anete. Sempre era assim, uma festa, o primeiro de janeiro. A procissão saía. “A nós descei divina luz!”, cantavam com fé e quase gritando as crianças e as beatas. – Devagar com o andor. – Devagar não, que o santo não é de barro, é de gesso. Era sempre assim o primeiro de janeiro. Um cheiro de Avon, Patchouli pelo espaço, algumas fragrâncias mais refinadas, um Armani, um Dior, um Givenchi. Todos iam nos trinques para a procissão de primeiro de janeiro. Angélica não podia faltar no andor, uma flor branquinha que cheirava mais que a preta do leite. – Deixe de preconceito, menina. – Que preta do leite, que nada. Era sempre assim o primeiro de janeiro. Lampiões acesos nas mãos dos coroinhas, o bispo com o véu de ombro, a sutra e o cajado. Um dia de gala e a multidão anônima quase se espremendo pela praça afora, alguns descalços, outros com velas enormes, outros de joelhos. Cada um levando o seu pedaço de fé. O andor ia seguindo bem devagar até, já na cruzada da rua da Frente, parar na Praça Fausto Cardoso, numa pausa precisa, quase uma permissão sacra, para adentrar na Ponte do Imperador. Ali é que começava a procissão. A balaustrada cheia de gente, que ia do Thales Ferraz ao Iate, o navio já ancorado esperando o santo, marinheiros por todos os lados, e o Santo, lá , parado esperando a hora precisa de entrar na Ponte do Imperador. Como se ali, na ponte, estivesse o mistério de todos os perdões, como se aquele pedaço de cimento e colunas, com o chão de pedras escuras e abandonadas, aguardasse o momento exato, único, da passagem do Bom Jesus para abençoar o local. É assim todo o primeiro de janeiro em Aracaju. A ponte é o retrato de um tempo que se renova. É da ponte do Imperador que fitamos os barcos ao longe, a Atalaia Nova, a Barra dos Coqueiros e as to-tó-tós atravessando o rio. É na ponte do imperador que dormem esquecidos alguns desencantados da sorte, com suas cachaças embaixo do braço, onde trafegam mundos diferentes, repletos de sonhos e desilusões. É ali, onde o andor de Bom Jesus debruça sobre o mar, onde começa a cidade com seu cartão postal. Deveriam até mudar da Colina do Santo Antônio para a ponte o nascimento da cidade. Mas não podemos subverter a história. Mas é ali, na Ponte do Imperador, onde também se mostra um Brasil de contrastes, onde, mesmo com a poluição do rio, as crianças de rostos sem destinos, os velhos barbudos quase sem esperanças, as mulheres com filhos nos ombros e pescadores ao longe, que emerge um desejo de poesia e de encantamento. Durante todo o tempo, com o passar dos dias, dos meses, dos anos, a ponte mantém-se lá, no mesmo lugar, em frente à praça que Rosa Faria pintou em seus azulejos e telas. Mesmo quando a maré transbordava, invadindo a Praça Fausto Cardoso, a ponte ali ficava, conduzindo o seu rosário de tempo, estancando o seu próprio destino, aparentemente frágil, mas resistente. É assim. Descortinando o passado, na aura de todos os ventos do rio, no bálsamo que vem da ponte, com seus paradoxos e circunstâncias, que vejo Bom Jesus descer da balaustrada para o rio. Foi na ponte onde certa vez joguei as chaves da paixão e as desilusões do amor. Até o cheiro daquela água, de todas as cinco da tarde a maré enchendo, aquele pôr de sol vanghoghiano, tudo na Ponte do Imperador lembra um Gaudí esculpindo nos ferros o farol de um tempo vivo. É como se o olhar de Horácio Hora, de Jordão, de Florival Santos e Álvaro, é como se o olhar da cidade, de quem chega, de quem vai, se debruçasse sempre sobre a ponte. É como se esta mulher-ponte, mulher-mãe dos desabrigados, mulher-santa de Bom Jesus fosse a tradução mais perfeita do lirismo da cidade. É ali, na Ponte do imperador, o começo de todos os perdões. É ali, na Ponte, onde a fotografia invade a vida. Onde os olhos são mais que uma radiografia da Ponte. Onde a ponte são os nossos próprios olhos. Autor: Emersom / Araripe Coutinho 3º colocado no 2º Concurso de Crônicas sobre a cidade de Aracaju
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