Linguagem e verossimilhança em Budapeste, de Chico Buarque

Ícone da música popular brasileira, Chico Buarque de Holanda sempre teve uma relação muito próxima com a literatura. Nos idos de 1970, publicou uma novela alegórica, Fazenda Modelo (1974), que não chegou a despertar maior entusiasmo. No entanto, a partir de Estorvo (1991), a que se seguem Benjamim (1995) e, por fim, Budapeste (2003), o consagrado compositor revelou-se também importante ficcionista. Com o último livro, foi o grande vencedor do Prêmio Jabuti 2004. O romance Budapeste, editado pela Companhia das Letras, foi eleito o melhor título de ficção daquele ano pela Câmara Brasileira do Livro.

Valendo-se de uma prosa áspera, Chico Buarque sempre procurou explorar algumas das questões nucleares vividas pela sociedade brasileira contemporânea. Budapeste, seu romance mais popular, é a história de um ghost-writer, alguém que escreve o que outras pessoas assinam, artigos para jornal, discursos de autoridades, autobiografias e, no ápice, poemas. É um brilhante autor anônimo, se é que isso é possível. O ghost-writer é José Costa, que vive no Rio de Janeiro, é casado com uma jornalista que engravidou quando ele se sentia despojado de amor próprio.

Na qualidade de sócio-proprietário da Cunha & Costa Agência Cultural, seu trabalho é escrever para outras pessoas textos que, não raro, alcançam sucesso, são comentados, forjam jargões, mas o mantêm anônimo. Sua solidão, contudo, é relativa. Existem tantos como ele espalhados pelo mundo que chegam a se reunir em congressos mundiais de escritores desconhecidos. Na volta de um desses eventos, realizado em Istambul, Turquia, seu avião é desviado e ele conhece a cidade de Budapeste, Hungria. Acaba ficando mais do que o necessário e, como ninguém por lá sabe pronunciar José Costa, surge, então, Zsoze Kósta, um brasileiro apaixonado, ou seduzido, subjugado pela língua magiar, que passa a viver com a bela Krista, mulher que lhe ensina o novo idioma. É o diálogo entre os dois personagens que nutre Budapeste.

José e Zsoze

José é capaz de escrever sobre qualquer assunto, desde que seja em prosa. Atinge o cume de sua carreira ao criar O Ginógrafo, “autobiografia” erótica de Kaspar Krabbe, um executivo alemão que “zarpou de Hamburgo e adentrou a Guanabara” (sic). Na pele de Zsoze, no entanto, ele só escreve em versos. Assim que começa a dominar o idioma magiar, cria um livro de poemas, Titkos Háramsoros Versszakok ou Tercetos Secretos, que sai assinado por um tal de Kocsis Ferenc, poeta em franca decadência que volta a fazer sucesso com o livro. São referências cruzadas que se repetirão pelo livro.

Em certo momento, José abandona Vanda, a mulher, no Rio de Janeiro para descobrir-se Zsoze nos braços de Krista, em Budapeste, e vice-versa. Mas Vanda acaba se apaixonando pela autobiografia do alemão Krabbe, sem saber que escrita por José. Enquanto Krista considera os poemas nada mais que “exóticos”, o que leva Zsoze a romper com ela. Esta idéia de espelhos, simulacros e duplos remete a escritores como Henry James e Jorge Luis Borges, como sinaliza José Miguel Wisnik, encarregado do texto de apresentação do livro. Aos que se identificam mais com histórias do que com estruturas, porém, a liberdade de José-Zsoze em lidar com seus devaneios guarda ecos de Rubem Fonseca nos seus melhores momentos. Não por acaso, o autor de romances policiais é amigo de Chico. A diferença é que o personagem de Chico Buarque se revela voyeur de si próprio e de seus delírios.

O que chama a atenção em Budapeste, principalmente em relação aos enredos asfixiantes dos livros anteriores, é a linguagem mais palatável, sedutora até, com que envolve o leitor para enfim aprisioná-lo numa armadilha estilística: o que é verdade e o que não é? Mas justamente aí aparecem os problemas.

Traumático

Críticos identificaram que, na linguagem, em vários trechos o narrador é um Chico Buarque piorado: a passagem do verso musical, contido, sintético, para a prosa não se faz sem trauma. A ambigüidade que ele explora, que no verso é um prêmio, e na música, que Chico exerce com maestria, uma felicidade, na prosa nem sempre é um achado.

Outro problema está na verossimilhança. O personagem verossímil não é aquele papel carbono da vida real. Que o personagem se acorde num corpo de um inseto, ou que passeie no inferno com o diabo, ou veja o fantasma do pai num castelo, tudo isto pode ser bem verossímil, e mais importante, absolutamente possível e necessário, de acordo com a classificação da Poética de Aristóteles. Mas um ghost-writer que vive como um compositor de sucesso é verossímil? Sem trabalhar, consumindo, a comer e a beber, a pagar aulas de húngaro, sem prejuízo das suas despesas domésticas no Rio, o narrador passa mais de quatro meses num bom hotel em Budapeste. E, quando na decadência, de volta ao Rio, o personagem sem dinheiro passa mais de 100 dias em um apartamento de hotel — até que um dia é cobrado. Isso é verossímil?

Como exemplifica Beth Brait, no livro A Personagem, há uma falta total de veracidade à personagem Indiana Jones, vivida pelo ator Harrison Ford no filme de Steven Spielberg, mas não falta verossimilhança, porque “seu comportamento e o desfecho das ações por ele protagonizadas estão apoiados nas necessidades do encaminhamento da história, da fábula, que neste caso é suficientemente redundante, exaustivamente marcada por traços acumulados por uma tradição narrativa despida de estranhamento”. Talvez o que tenha faltado ao livro de Chico.

 

A propósito

Certa vez, falando sobre as músicas que fez sob censura, Chico Buarque foi de uma sinceridade genial: “Eu mesmo, quando ouço as músicas que escrevi, não entendo o que eu quis dizer”.

Todo mundo que escreveu sob censura e sobreviveu a ela deve mesmo esquecer depois. Afinal, o papel a que aquilo se propunha desmancha-se com o tempo e perde a utilidade.

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