Num átimo de vida – Gustavo Aragão

…Era uma manhã pacata de sábado, quando Jó encontrava-se, em seu jardim, todo em sorrisos, borrifando água por sobre o seu roseiral silente e doce. Ele era um senhor solitário, gordo, baixinho, de cabelos crespos e traços grosseiros, que delineavam em sua inteireza uma face simpática. Resguardava em seus olhos um gato preto no canto esquerdo, inferior, que por vezes fugia quando um vento alegre te soprava a vida, coisa não muito comum em seus últimos dias. Apesar de solitário a ninguém devia, tinha todas as contas pagas com o que lhe restava da aposentadoria, vez ou outra se rendia ao mundo virtual numa busca fria de alguém para trocar algumas idéias, nada interessantes, muitas das vezes. Vivia. Costumava, com o nascer e o pôr do sol, fazer caminhadas, num parque, que ficava a três quadras da sua singela morada. Adorava ver o movimento das pessoas, ficava observando-as de longe. Não perdia sequer um detalhe dos seus alvos. Seus olhos aquilinos, mesmo com um pouco de dificuldade, captavam o sorriso da moça, que corria no parque; o abraço breve da mãe com o filho; a conversa sem graça entre dois jovens namorados; as pessoas que lançavam pipocas irrefletidamente, no lago, apenas, para chamar atenção dos peixes; a conversa agradável, porém um pouco distanciada do avô com um neto… Tudo aquilo fazia sua alma encharcar de saudade dos tempos em que tinha uma família feliz, próspera e unida, apesar de todos os problemas, que são comuns a todos os âmbitos familiares.  Não tinha mais tantas ambições na vida, vivia repetindo isto para as suas rosas, queria apenas viver em paz, até o seu último dia de vida. Não importunava ninguém, mas também não permitia ser importunado. Vivia casmurro; conseqüência da sua solidão forçada. Sua amada havia partido para outra dimensão há três anos, mas parecia ter sido ontem, que havia saído de sua vida, de forma inesperada. Tiveram juntos apenas um filho, que dera muito orgulho, mas que fora morar, na Europa, por causa dos estudos, lá constituíra família, estava realizado na vida. Vezes havia em que enviava cartões postais, com letras refinadíssimas que expressavam saudades e votos de saúde e paz. Nada mais. Aqueles cartões, que os tinha colecionados não podiam trazê-los, nem sequer o olhar dos seus… Traziam apenas palavras, que para ele não eram suficientes para estancar o vazio que lhe jorrava na alma e que a saudade e a distância lhe deixavam. “Dizem que para quem ama a distância é um nada. Mas para mim, vivo a nadar por este nada que inunda minhas horas, as poucas horas que ainda me restam.” Sempre dizia algo do tipo ao receber os poucos e esporádicos cartões que vinham da Europa.

Certo dia, acordou inspirado, o dia reluzia em seu interior, levantou-se, coou seu café, foi à porta, deixou-se aos ventos fortes e agradáveis que Aracaju lhe enviara, naquela manhã, onde tudo parecia estar sob controle. Ainda segurando a sua xícara com café, fora até o jardim, que o arquitetara e que construira com tanto carinho. Zelava por aquele espaço como zelaria por um filho. “As rosas são símbolo da esperança, da beleza, da suavidade, da poesia. As rosas nascem do esterco, entretanto, são belas e perfumadas. Extraem do mal cheiroso adubo que lhes coloco, tudo que lhes é útil e saudável, não se deixa contaminar pelo fel que escorre deles. Aprendo muito observando a natureza que nelas se manifesta.” Ele dizia isto à medida que passeava calmamente por entre as flores. Até que uma, nunca antes vista, e que havia brotado no canto esquerdo do jardim, talvez durante a madrugada, fê-lo titubear, teve vertigem, quase não conseguiu segurar-se em suas próprias pernas. Viu naquela rosa a personificação do seu amor: Rosália. Lembrou-se imediatamente dela, da mulher que tanto amou. “O que viestes me dizer, amada? Pensei que tivesses virado uma estrela, a qual me refiro, todas as noites, antes de dormi, durantes estes três anos, que se foi. Você como sempre surpreendente.” Sorriu, um sorriso de sol matinal. Ficou ali a observar a rosa-menina, por horas, depois ainda encantado, despediu-se e fora até o parque fazer a sua corriqueira caminhada. Não caminhava, flutuava por um mar de nuvens, que o conduziam para lá e para cá de acordo com a trajetória dos ventos, que sopravam gostosos, naqueles instantes. Até que um menino, que brincava com seus colegas de futebol, no parque, deu um bicudo na bola, que o atingiu na cabeça. Jó desmaiou, não apareceu sequer uma pessoa para ajudá-lo. Ficou lá, estendido no chão por alguns minutos, até que uma menina simples, negra, aparentando ter uns dez anos, com as vestes rasgadas, com os chinelos remendados, deu-lhe a mão para ajudá-lo, no exato momento em que recobrava a consciência. Via-se, agora, o povo aglomerado, em seu redor, demonstrando preocupação, os pais dos meninos, todos elegantes, então, se aproximaram para perguntar se estava tudo bem, se precisava de algum auxílio. Jó demonstrando um vigor, que não lhe cabia, respondeu: “Não se preocupem, estou ótimo!” Os pais crentes de que o senhor estava bem, por ele mesmo ter demonstrado, foram embora como se nada houvesse acontecido. Jó esquecera de dizer, apenas uma coisa, sentia uma dor de cabeça horrível. Mas nada mais podia fazer. Resignou-se. Agradeceu a menina por tê-lo ajudado a se levantar e pagou-lhe um sorvete. Fora para casa ainda meio tonto. No meio do caminho, dois jovens zombaram dele, dizendo: “Um velho bom de se respeitar, fica por aí, uma hora dessas, bebendo desse jeito! Vai se respeitar, velho!”; Uma senhora com os cabelos arrumados, vestida elegantemente o empurrou, quando Jó, ainda trêmulo de dor, tropeçou num paralelepípedo e caiu, esbarrando-se nela. O senhor caiu de joelhos. Sua calça de linho agora estava rasgada bem na região dos joelhos ensangüentados, esbranquiçados. Dava para ver o osso descoberto pela fina pele que recobria o seu corpo de quase setenta e cinco anos. O mundo parecia uma ave nervosa a lhe cercar, movimentando-se como numa ciranda descontrolada, azucrinando-lhe a visão, obumbrando seus instantes de agonia, deixando-lhe ainda mais aflito e atordoado.  Até chegar a sua casa fora alvo de chacotas, de calúnias, desprezos… Sentia-se um vão abandonado. Sua vizinha, debruçada, na janela de seu sobrado, o vira entrar em casa, mas pensou: “Seu Jó não é de beber. Não entendi essa. Será que agora se deixou levar pelo vício. Deus do céu! Mais tarde terei uma séria conversa com ele. Vou deixá-lo descansar um pouco. Será que ele pensa que é um passarinho, que pode sair por aí, voando pelo mundo? Ele tem é que tomar juízo! Mais tarde vou, lá, conversar com ele.”

Seu Jó agarrando-se à porta conseguiu entrar em casa se contorcendo com as dores na cabeça. Só foi entrar e fechar a porta, que caiu no chão, aumentando o rasgo no joelho, ferindo-se em outros lugares. Fora se arrastando até o seu quarto, desenhando no piso um caminho de dor. Uma dor cor das rosas que cultivava, em seu jardim. Parecia que elas estavam ali com ele. Desmanchavam-se e se liquefaziam com ele, deixando um rastro carmesim das forças que se exauriam, pouco a pouco. Fora se arrastando, cada metro quadrado parecia uma escalada até o cume de uma montanha. Sofria calado, gemia baixinho, não queria importunar ninguém, apenas, queria viver até a sua última gota de vida. Chegando ao quarto lembrou-se de Rosália e de momentos felizes de sua infância e de seu filho, na Europa; do parque, das caminhadas, das rosas da rua que se agitava a cada passo que dava, da terra que girava cada vez mais rápido mais rápido rápido, até que veio a escuridão, o gato preto ficou na frente da sua câmera; da câmera com a qual filmava o mundo e que agora, nada mais conseguia enxergar. Tentou afugentar o gato, mas ele teimoso não mais saiu dali. Cansou. Não tinha mais forças. “fu…”.

A vizinha chegou à casa de Jó, bateu na porta três vezes, como ninguém atendeu, foi entrando. Dizia: “Seu Jó, ainda está dormindo? O que é isso, seu Jó? Não és mais um menino. Não podes beber deste jeito…” Ao entrar no quarto e ao se deparar com o velho estirado sobre a cama ficou boquiaberta, nos olhos dela não cabia tamanho espanto, seu coração se arrepiou com o vento gélido que lhe tomou as artérias, ficou pálida, levou as mãos à boca e sua alma gritou, um grito desesperado, que ressoou somente dentro dela, mas que lhe saltou pelos olhos esbugalhados e impotentes. Fora tarde demais. Ficara em estado de choque.

Ainda atônita notou que uma borboleta lilás trespassara a janela e pousara por sobre os lábios do seu Jó como se o beijasse serenamente. Ela tentou pegá-la, mas não conseguiu, pois a borboleta arguta resvalou por entre suas mãos vacilantes, num vôo sereno, que a ajudou a sair pela janela, ganhando os ares, para nunca mais…   

Por Gustavo Aragão                                                                                  


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Site do autor: www.infonet.com.br/gustavoaragao
 


 


 

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