Novo espetáculo de Débora Colker é baseado em poema de João Cabral de Melo Neto (Foto: divulgação) |
Bailarinos cobertos de lama num espetáculo que trata da miséria e da destruição da natureza. É o que se verá em O Cão sem Plumas, o novo trabalho de Deborah Colker, com estreia em Aracaju no dia 29 de março, a partir das 21h, no Teatro Tobias Barreto.
E é novo de fato: a coreógrafa jamais fizera nada sequer semelhante nos 23 anos de sua companhia – que conta, desde 1995, com o patrocínio da Petrobras.
O poema homônimo, publicado em 1950 e um dos mais importantes da obra de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), leva Deborah e seu grupo ao meio da pobreza e da riqueza do Estado de Pernambuco, no Nordeste brasileiro.
Um ambiente bem distante da Rússia de Tatyana (2011) e da França de Belle (2014), os últimos balés da companhia. E com uma linguagem que não faz lembrar os trabalhos da coreógrafa que tiveram maior repercussão internacional: O Ovo, realizado em 2009 para o Cirque du Soleil; e a abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016.
Na criação de O Cão sem Plumas, Deborah tem um parceiro: o cineasta pernambucano Cláudio Assis, diretor de filmes marcantes como Amarelo Manga, Febre do Rato e Big Jato. Imagens captadas por ele serão projetadas durante o espetáculo – não como pano de fundo, mas como parte fundamental da narrativa.
Outros artistas de Pernambuco têm presença decisiva no projeto, como os músicos Jorge dü Peixe, do grupo Nação Zumbi, e Lirinha. Eles são responsáveis pela trilha sonora – ao lado de Berna Ceppas, habitual parceiro da coreógrafa – e interpretam trechos do poema.
“O espetáculo é pernambucano, mas não é regionalista”, ressalta Deborah, que tem como influências Josué de Castro, autor de “Geografia da Fome” e “Homens e Caranguejos”, e o cantor e compositor Chico Science (1966-1997), criador do movimento mangue beat e que pregava a mistura do local com o universal.
No balé, aparecem personagens que são fundamentais para este trabalho de Deborah: os homens-caranguejo, pessoas que vivem e trabalham em torno do mangue no Estado de Pernambuco.
“Essas pessoas são guerreiras, fortes, resistem. O mangue é a comida delas. A lama é a casa delas. Vejo quase como samurais”, diz a coreógrafa, que concebeu, para a montagem, figuras que evocam guerreiros, como se as patas dos caranguejos fossem espadas. “O poema é o encontro da exuberância com a tragédia, da riqueza com a miséria.”
Em O Cão sem Plumas, João Cabral tem como protagonista o Capibaribe, rio que começa no semiárido pernambucano e chega ao Recife. Em quatro partes, o poema acompanha a sujeira das águas, a miséria da população ribeirinha, a desigualdade social, mas também a capacidade que homens e rio têm de se manter vivos, espessos – adjetivo muito usado pelo autor.
A expressão “cão sem plumas” diz respeito ao rio e aos homens que dependem dele. Conhecido por seu rigor e pela aversão a sentimentalismos, Cabral utiliza a imagem para retratar com mais força o que é o Capibaribe e a luta das pessoas pela vida.
Deborah diz que o poema é o “timoneiro” do espetáculo, que segue o mesmo percurso dos versos. Mas ela se permitiu liberdades como pôr bailarinas representando garças. As aves, muito brancas, são comuns nos mangues, muito escuros. E a coreógrafa as vê simbolizando a aristocracia.
“João Cabral previu em 1950 o que a gente está vivendo hoje: a escassez de água no mundo. Rio de Janeiro e São Paulo já têm sofrido com a falta de água. No Nordeste há barragens secas. E quem provocou isso foi o homem. O poema não tem nada de panfletário, mas não deixo de vê-lo como um manifesto”, afirma a coreógrafa.
Desde 2014, quando começou a conceber o projeto, Deborah fez várias visitas a Pernambuco e navegou pelo rio. Em novembro passado, ela, o diretor executivo e fundador da companhia, João Elias, e os bailarinos passaram três semanas realizando oficinas com moradores de seis cidades e aprendendo sobre as manifestações culturais da região. Conheceram a seca, entraram no mangue, foram em favelas onde pessoas vivem sobre o lixo.
O processo foi filmado por Cláudio Assis e fotografado por Cafi. Alimentou de referências o diretor de arte Gringo Cardia e a própria Deborah. “Voltei de lá decidida a mudar muita coisa. E fiquei certa de que o espetáculo devia acontecer inteiramente na lama”, conta ela. São lamas de várias cores, espelhando os lugares por onde o Capibaribe passa até se encontrar com o mar. Assim como no poema, o balé será, ao mesmo tempo, colorido e seco. Ou, como diz Deborah, exuberante e trágico.
Com informações da organização do evento