Artesão esculpiu 9.800 peças. 300 delas cabem numa caixa de fósforos. A maior mede onze metros sem ter uma só emenda Mílton Alves Nas mãos, aos sete anos, um bolo de cera de abelha era minuciosamente trabalhado. As figuras iam, pacientemente, ganhando forma. Uma pessoa, um animal, um objeto qualquer. Na mente daquela criança desenvolvia-se o sentimento pelas artes. Aos 56 anos, Cícero Alves dos Santos, Véio, é uma das consagrações da escultura sergipana. Ele reconhece que penou para vencer preconceitos, dentro e fora da família, como o julgamento de que arte é coisa para preguiçoso. Logo ele, que vive num pedaço do rincão nordestino, no povoado São Domingos, entre os municípios de Feira Nova e Nossa Senhora da Glória, onde está cravada a idéia de que cultuar a arte é ser efeminado – homem que é dado a ocupações ou hábitos femininos. As resistências persistem. Véio não esconde a tristeza de ele não ver a arte valorizada, exatamente por causa dos preconceitos infames. “Eu nunca trabalhei como empregado de alguém. E por isso sempre fui chamado de aventureiro. Aceito o rótulo de aventureiro, impulsionado pela beleza da arte. Não querem enxergar o talento”, reage, revelando passar horas e horas a ver um pássaro, como o joão-de-barro, construindo suas casas, ou o trabalho das formigas no campo, dando-lhes lições de vida. “O aprendizado é fantástico”, resume. Essa é a visão que ele tem da arte e da vida. A escultura é instrumentalizada por ele para contar, em detalhes, a vida sofrida do nordestino. “A fonte de imaginação é imensa. O homem do Nordeste é contraditoriamente alegre e triste, do seu nascimento à morte”, julga, fazendo as contas de que em 49 anos dedicados à arte ele esculpiu 9.800 peças, das quais três mil estão em poder dele, cinco mil peças foram recolhidas ao Memorial de Sergipe, instalado pela Universidade Tiradentes, e outras 1.800 peças vendidas e que estão espalhadas pelo mundo. Com a visão de que a arte não é avaliada pelo tamanho ou pelo peso, Véio tem a proeza de colocar 300 diminutas peças, compreendidas com o auxilio de uma lupa, dentro de uma caixa de fósforos. Na outra extremidade, ele conserva uma peça de onze metros, totalmente trabalhada sem emendas. “As menores chamam mais a atenção”, contempla, sem que precise de qualquer instrumento para esculpi-las. “Deus me deu uma visão perfeita”, agradece com fé, lembrando fatos hilariantes ocorridos em exposições dele, por esse Brasil afora. – Certo dia, numa dessas minhas exposições, uma senhora, desatenta, mexeu na peça no formato de um boi na cabeça de um alfinete. Essa peça é tão pequena que as pernas do animal têm espessura de um fio de cabelo. Resultado: pedi a ela que colocasse as pernas do animal devidamente como ela encontrou. Não soube. Ficou muito nervosa e dizendo que nada enxergava. Com uma lupa, ela finalmente compreendeu o que havia feito. Pediu-me desculpas, que foram prontamente aceitas. Mas não foi embora sem que antes me visse reconstruir a peça – conta. Véio tem lembranças nada agradáveis. Em 1982, ele foi convidado para fazer uma exposição numa feira de bovinos e caprinos que ocorreu em Nossa Senhora da Glória. Considerou o convite interessante. Pensou ser o momento maior para quebrar os preconceitos regionais contra a arte. Preparou-se. Foi-lhe dito que as autoridades estaduais e municipais, além dos ilustres convidados, visitariam a exposição que relatava a cultura nordestina. Sonhou horas com o que diria sobre cada uma das peças exposta. Sonhou e nada pode dizer. – As autoridades chegaram – recorda – e foi aquele barulho de fogos de artifício queimados. Fiquei assustado com tanto barulho. Às autoridades foram mostrados tão somente os animais que haviam vencido na feira. Um carneiro havia sido o destaque e lá estava ele sendo acariciado por alegres e bem vestidos homens do poder. Esperei que eles viessem a mim. Nada. Foram embora, enquanto eu estava lá no meu cantinho, isolado e esquecido. Eu Juntei as minhas peças e fui embora, consciente de que ali ninguém se interessava pela cultura. Véio, de tanto ouvir adultos – Criança é para estar na escola. Há quem quebre essa regra. Cícero Alves dos Santos, Véio, é um destes. Nunca foi bom aluno, detestando a matemática. Preferia, sim, aprender com os mais velhos. Por isso, ao invés de brincar com as crianças da sua idade estava sempre nas rodas de adultos. “Vai para lá menino” – sempre ouvia um aconselhar. Um conselho geralmente nunca respeitado. Queria mesmo era ouvir as boas e longas conservas dos mais velhos, por compreender que estava mais a aprender. Véio, Véio. Foi assim, de gostar de juntar-se aos mais velhos, que ganhou o apelido. E ele pouco se importou. “Eu queria era aprender. Conhecer coisas valiosas. Queria uma boa cultura e eles, os adultos, tinham a me dar”, diz, convicto de haver feito a melhor opção de vida. Cresceu decidido a explorar o lado artístico, o que nunca lhe valeu um bom olhar… mesmo dentro da família. O estigma que carregava era o de preguiçoso, numa região em que os homens ainda se dedicam à roça para sobreviver. Alimentou a idéia de conciliar a arte à política. Filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro, PTB, candidatou-se em 1988 a vereador, em Nossa Senhora da Glória. O homem das peças pequenas, o homem da escultura, ele assistiu à sua consagração nas urnas. Logo vieram as decepções. “Percebi que os políticos não têm nenhum compromisso com a cultura, não têm compromisso com a arte, não têm compromisso com a sabedoria”, radicaliza. “Eleição, como candidato, jamais”, proclama. E a radicalização leva-o a comparar o político a uma prostituta. “Uma prostituta tem muito mais valor do que o político. Ela finge que sente prazer, faz o parceiro, enganado, ficar feliz e ganha o dinheiro. O político sequer sabe fingir que anda com alegria. Eles andam de cabeça baixa, até pela quantidade das promessas que dificilmente podem cumprir. O prazer deles é nenhum”. O artesão fulmina: “A profissão de prostitua é pior, mas ela não é corrupta”. Numa pequena casa, de dois quartos, sala, cozinha e banheiros, erguidos no povoado São Domingos, na estrada que liga os municípios de Feira Nova e Nossa Senhora da Glória, o artesão Véio se refugia para as suas criações artísticas. Por todos os lados lá se encontra a vida do nordestino. Na entrada da casa, as estacas da cerca de arame farpado, que delimitam a propriedade, estão a proteger gigantes figuras esculpidas em madeira representando o povo sofrido do Nordeste. – O sentimento é muito forte – observa o artesão, mostrando um corpo dentro de uma urna (caixão) bastante colorida. À frente, uma mala com um significado extremo: quando se morre, leva-se a cultura; ficam os bens materiais que se tornarão motivo de brigas. “Nesse universo se tem uma história diferente, como ela deve vista. Pela arte, de um lado, uma pessoa bem trajada, e, por outro, uma pessoa maltrapilha. No mesmo espaço se tem tudo, como o homem de terno acompanhado pela corrupção”. Até uma família real é mostrada por Véio, por outro ângulo, que não seja necessariamente o da beleza, do luxo e da riqueza. Rei, rainha, príncipe e princesa não aparecem bem vestidos e bonitos. São pessoas com defeitos físicos. “Isto quer dizer que a arte aceita o deficiente, coisa que, na vida real, é criminosamente desprezado. O governo da arte contempla o conhecimento, não a bajulação. E boa parte dos nordestinos forma para mim esse governo da arte”.