Perseguindo velhos sonhos

Uma hora esgota. A corda estica e rompe. Para alguns, o amor ou a própria safadeza é assim: tem final bem longe da felicidade. Eu, recém-formado, estava trabalhando em um jornal, na época em que jornal escrito era ainda valorizado, quando um amigo me ofereceu uma carona pra casa. Deadline ok. Fomos pro carro conversando sobre o trabalho, todos esgotados de escrever e não ver nada acontecer, e coisa e tal. Pouco depois de sairmos do estacionamento do jornal, já na avenida principal, o rosto do meu amigo mudou a fisionomia. Eu me assustei, mas como estava de carona fiquei na minha. Ele, super sério.

– Jaime, se importa se eu te deixar em casa daqui a pouco? Preciso verificar uma coisa antes – disse meu amigo.

Eu que adoro uma ação, respondi: “ok”, sem nunca suspeitar o que viria a seguir. Em seguida, coisa de segundos, percebi que começávamos a perseguir um carro azul. Eu até então achando tudo meio divertido! Passamos pelos Mercados do Centro da cidade, cruzamos Barão de Maruim, e tome Beira Mar. Logo veio a ponte do Riomar, caminho distinto de minha casa, e seguimos cruzando a Coroa do Meio. Detalhe: o jornal que nós trabalhávamos ficava na zona norte da cidade, o que significava que estávamos cruzando Aracaju inteira atrás de um carro, que até então eu não sabia nem de quem se tratava o dono.

– Por que você está correndo assim? Quer ver quem naquele carro? – perguntei.
– Ele – respondeu meu amigo.

Claro que alguém que só responde: “ele”, não é alguém que está com vontade de ampliar o tema. Mas enquanto jornalista, eu não me contive e quis aprofundar.

– Quem é “ele”? – perguntei.
– Aquele filho da puta que eu tenho um caso há 20 anos e que agora está com coisa, me dizendo que não quer mais continuar comigo – rosnou meu amigo pra mim.
– Espere aí. Você está há 30 minutos perseguindo um carro, que você nem tem certeza de quem se trata, se é seu tal namorado, e ainda mais um cara que não quer nem continuar com você. E desde quando você tem namorado? – caí na besteira de perguntar.
– Não somos namorados. Nós temos um caso. Ele é casado com uma mulher. Uma velha. A esposa dele é uma velha. E eu sou o segredo dele – confidenciou meu amigo pra mim.

Meu queixo estava no chão do carro. Chocado e constrangido não sabia o que fazer agora ali. Uma carona direto pra minha casa estava se transformando num caso de polícia, com meu amigo sociopata perseguindo um outro homem que o abandonou.

– Mas por que você falou que a esposa dele é velha? – quis saber.
– Ele também é velho! – me disse.
– Como assim velho? Quantos anos? – já pensando se existia na lei algum crime pra quem perseguisse idoso, mesmo que fosse um idoso adúltero.
– Aquele safado tem 64 anos!

Deus do Céu é idoso mesmo! De verdade, pela Constituição Brasileira eu estava em perseguição a um idoso. Passou dos 60 é idoso. Mas gente, com o Viagra, todo idoso transa agora. Todo mundo voltou a fuder após os 60 anos. Não deveria ficar admirado com as informações obtidas na carona. Só pensava nas campanhas de sexo para a terceira idade. Pensava se poderia ter algum charme beijar um idoso. Depois comecei a imaginar meu amigo transando com um idoso (estalo mental) num motel bem vagabundo, e só vinha a imagem de Tarcísio Meira em minha cabeça. Depois a imagem de Glória Menezes chorando na sacada de uma casa de vidro por ser abandona pelo galã. Aí voltava pro meu amigo nos braços de Tarcísio Meira, e o cabelo de Tarcisio Meira. O tipo do gel que Tarcísio deveria usar pra fixar o penteado eternamente num canto só. Será laquê? Gente antiga usa mais laquê. Meu cérebro fervendo com tanta coisa e tudo isso num lampejo de pensamento, frações de segundos, enquanto as luzes dos postes da Coroa do Meio iam dando sinal de que já estávamos chegando na beirada da Orla.
E tome pista pela frente. “ E esse maldito idoso adúltero bissexual não vai parar?”, pensava.
– Mas amigo por que você está perseguindo esse cara? Será que ele não querer mais você não seria um sinal de que ele não quer mais transar. Sei lá. A libido cai com a idade, né? – joguei assim no ar sem querer nada!
– Claro que não. Ele é safado. Ele me deixou porque arrumou uma puta! – gritou meu amigo, acelerando ainda mais o carro.
– Espere: o cara é casado, ficou com você e agora tem uma amante mulher? Mas será que ele não está num momento hétero?
– Hétero o quê, Jaime? Todos os héteros morreram há séculos. Ele é safado, não consegue ficar sem comer ninguém. Quer homem, quer mulher, qualquer coisa que se mova. Agora vem pra cima de mim, dizer que não me quer mais. Que estou velho. Eu conheci ele tinha 20 anos, eu era uma criança, praticamente ele me seduziu. Ele já tinha 44 naquela época, pai de família. Me usou por 20 anos. Acabou com 20 anos de minha vida. É demais. É demais, pra mim. Ele vai ter que saber que não poderá me abandonar jamais – frisou ele.
– Mas como ele é seu gente, se ele já é casado? E lá alguém é de alguém, amigo? As pessoas estão em suas relações apenas, e pulam pra outras ou continuam onde estão. Simples assim – ponderei.
– Comigo não tem isso de me deixar não. De pula-pula. Não aceito. Me trocar por uma vagabunda, quem ele pensa que é? – gritou meu amigo.
– Certamente alguém que não quer mais você – falei.
– Ah, mas se ele acha que não vai mais ficar comigo, ele que me aguarde porque vou transformar a vida dele num inferno – disse.

Naquele momento vi a Alex Forrest, personagem da Glenn Close em Atração Fatal, ali mesmo sentada comigo enquanto planejava matar o coelho da filha do cara com quem ela tinha um caso. Só que tudo ao volante passando pela Passarela do Caranguejo. Eu quis chorar. Primeiro de pena de meu amigo naquela situação, depois de pensar na esposa idosa recebendo o dossiê do marido semi-gay dela, e vendo a família no Natal falando: “Era tão bom quando nosso pai não era viado”.

– Você acha que ele já percebeu que você o está perseguindo? Você já fez isso antes?
– Já!
“Desde quando você se tornou um sociopata que maltrata idosos?” – quis perguntar, mas achei que não cabia.
– Espere você tem histórico de perseguir ele? Vai ver vem daí o ranço que ele tá de você.
– Ranço nada. Ele disse que me amava. 20 anos não são 20 dias, Jaime! – sussurrou pausadamente.
– Mas amigo desapegue disso. Tem outros velhos no mundo. Oh, lá mesmo no Centro da cidade tem tantos velhinhos sentados querendo alguém pra conversar. Trocar uma ideia, talvez uma saliva – disse querendo rir da situação.
– Não quero mais velho nenhum. Só gosto dele. Só me importa ele!

O carro do “idoso fugitivo” tinha dado uma puta volta na Orla, e agora já estava cortando a Atalaia inteira sentido Tecarmo. Seria essa a carona mais longa da história?

– Você tem ideia de onde ele esteja indo? Será que ele percebeu e está despistando você, fazendo você gastar a gasolina. E se a gente ficar no meio do nada, na Aruana? (a gasolina naquela época não custava quase cinco reais, a vida era mais fácil).
– Ele deve tá indo pra casa da puta. Eu já sei onde ela mora. Já sei tudo sobre ela. Tem quase 40 anos. Foi casada, o marido deixou. Agora depois de coroa virou amante – enfatizou ele com raiva.
– Mas uê você também não é amante do velho e tem a mesma idade dela praticamente? Amante por amante… – disse
– Mas fui o primeiro e quero continuar sendo assim – confidenciou.
– Você está perseguindo ele pra matar? – naquela hora eu já estava pronto pra qualquer resposta, e até ser acusado de homicídio doloso. A vida é assim mesmo. A gente acha que tá de boa por um amigo oferecer uma carona e acaba com um advogado recém-formado tentando encontrar uma brecha na justiça pra tirar a gente do Presídio do Santa Maria.
– Se ele não deixar essa vagabunda, nem sei do que sou capaz. Matar, não! Mas que ele e a família receberão notícias minha ah meu amor, isso sim – falou.

Fiquei pensando, que pro velho morrer poderia até ser uma opção legal mediante a tempestade que ele iria viver ao ter que lidar com a verdade de sua vida. O carro perseguido entrou numa das ruelas da Aruana, e a velocidade começou a diminuir. O cidadão parou. Meu amigo igualou o carro ao dele e baixou o vidro.

– Quer dizer que é aqui que você anda se escondendo!? – perguntou já sabendo que sim.

O velho perseguido olhou meu amigo diretamente no rosto e com as córneas sem vida soltou um seco: “O que você está fazendo aqui?”. Se o velho soubesse que estávamos há quase uma hora atrás dele rodando pelas ruas de Ará, talvez ele tivesse até medo de saber a resposta.

– Estou olhando até onde vai a sua cara de pau. De fazer o que você tá fazendo com a nossa relação. Me deixando por uma vagabunda qualquer (oi? não seria a esposa a única reclamante da traída?), uma mulher lixo que não te ama. Que só quer seu dinheiro e destruir sua família. Eu sim, te amo e sempre me calei pra ninguém saber que a gente tinha um caso. Me anulei por você (talvez estivesse aí o problema), seu escroto do caralho! Eu que amei mais que todo mundo amou neste mundo (haja redundâncias quando estamos amando). Se até hoje fui feliz foi porque tinha você, eu sabia que tinha você nestes 20 anos juntos (eita, a dor do amor frágil). Foi porque o que sinto por você me levou até onde estou – enfatizou meu amigo.

Em meu silêncio percebi que a coisa era mais séria do que eu pensava. Meu amigo estava dilacerado sentado dentro de um carro ligado e sem ar condicionado, numa rua sem calçamento da Aruana. Naquele instante pedi pra acordar daquele pesadelo dentro de minha casa, mas até chegar à Farolândia eu teria que viver aquele drama alheio, e fazer meu papel de amigo.
– Ei vamos nessa. Você já viu o que queria – falei bem baixinho, segurando o braço dele e pedindo a Deus pra que ele não saltasse do carro em direção ao velho.
– Vamos! Estou esgotado – disse ele, levantando a voz na sequência: “Mas aguarde que a nossa história ainda não acabou” – gritou ele pro idoso – que ali já meio nervoso abria a porta da casa meio antiga, com aparência de alugada.

Fim (por enquanto).

Para me contar de suas perseguições, dramas e afins, acesse meu Instagram: @jaimenetoo.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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