VERSO & PROSA VIRTUOSOS (II)

Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) foi soldado em Lepanto, em 1571, alistado nas tropas de Dom João da Áustria, contra os sarracenos. Não estava só, outros autores do seu tempo, como Juan Rufo e Cristovão de Virués, também lutaram pela fé católica contra os infiéis. Cervantes, como os outros, dividia o tempo entre escrever e guerrear, atividades aparentemente díspares, mas unidas pela mesma noção ideológica da época, amparada nos valores e nas virtudes dominantes. Mais do que enfrentar as armas dos mouros, Miguel de cervantes sofreu o cativeiro na Argélia por cinco anos, tornando as marcas físicas, principalmente o movimento perdido da mão, ainda mais visíveis. Sua vasta obra é toda ela referenciada como notável, muito especialmente O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote da Mancha, cuja primeira parte foi publicada em 1605 e revolucionou a novelística européia, abrindo caminho para outros livros, igualmente bem aceitos como as Novelas Exemplares, de 1613. A Segunda parte do Quixote apareceu em 1615, quando já havia imitação e continuação da obra em outras partes da Europa. O Dom Quixote tem características diferentes da literatura até então dominante, como se poderá conferir com a relação de livros que estavam, mais de cem dos grandes, nas estantes do Fidalgo. Tido como um livro satírico, o Dom Quixote terminou ganhando notoriedade como tantos textos que circularam nos anos quinhentos e nas primeiras décadas dos seiscentos, e que guardavam certa fidelidade as novelas de cavalaria e as novelas pastoris, ambas em versos e prosa, derivados das velhas crônicas, dos romances, do cancioneiro, muitas vezes confundindo as origens e as variantes, como se todos os textos tivessem origem numa só fonte arquetípica. Pelos seus personagens o autor dá a idéia do volume e da variedade de tais novelas. No escrutínio ou exame cuidadoso feito pelo padre e pelo barbeiro nas estantes do Fidalgo, desfilam obras e autores, numa seqüência temática que serve, hoje, para a compreensão crítica da produção intelectual daquele tempo. Embora haja, como anotam os críticos, uma sátira em tudo o que se lê no Quixote, a relação dos livros pertencentes ao personagem errante é uma das mais valiosas pistas para a reconstrução da história cultural daquele século, quando Espanha, Portugal, Holanda, Inglaterra, França lançavam-se ao mar, nas conquistas do Novo Mundo. Ali estava não apenas a literatura, não só os hábitos, costumes, modos de vida, intencionalidades, feitos heróicos, casos de amor, de amizade e de fidelidade, nem também apenas as guerras religiosas, estavam os valores, os sentimentos, engrossando o caldo de cultura que como seiva nutria o organismo da velha humanidade. Os livros das estantes do Quixote representam, naquele tempo, um cabedal do mundo, ainda que fosse um mundo que mudava com as descobertas marítimas, com as invenções e os progressos da ciência, que mudava como também estava mudando a forma de escrever e de divulgar os textos, impressos pela maravilha gutemberguiana. O padre e o barbeiro, auxiliado pela sobrinha do Fidalgo, pegam e comentam mais de trinta livros, a começar pelo Amadis de Gaula, obra germinal, aparecida em livro em Zaragoza, na Espanha, em 1508, embora pareça ser um texto do século XIV, de origem portuguesa, de autoria de Vasco de Loberia, nascido no Porto e feito cavaleiro em 1385, para a célebre batalha de Aljubarrota. A edição da obra, em 4 livros, foi feita por Garci-Ordónez de Montalvo, que é, também, autor da continuação, ou livro 5º, intitulado As Aventuras de Esplandian, o segundo dos livros citados na casa do Quixote. O Amadis de Gaula propiciou muitas outras versões e continuações, como a Crônica do muito valente e esforçado Príncipe e Cavaleiro da Ardente Espada Amadis da Grécia, filho de Lisnarte da Grécia, Imperador de Constantinopla e de Trapisonda e rei de Rodes, que trata dos seus grandes feitos em armas e dos seus altos e estranhos amores, ou simplesmente Amadis da Grécia. Em Lisnarte da Grécia o protagonista é neto de Amadis. Uma saga interminável de façanhas e de amores. Além dos três livros do ciclo do Amadis de Gaula os censores mostraram Dom Olivante de Laura, editado em Barcelona, em 1564, de autoria de Antonio de Torquemada e que tem uma bela descrição da Casa da Fortuna, feita por Leocasta; Jardim de Flores, também do mesmo Torquemada; Florismarte (ou Felizmarte) de Hircania, de Melchor Ortega, Valadolid, 1556; Cavaleiro Platir, Valadolid, 1533; O Cavaleiro da Cruz, de Pedro de Luján, Servilham 1534, Toledo, 1543; Espelho de Cavalaria, de 1586; Orlando Enamorado, de 1586, de Matéo Boyardo; Bernardo do Carpio, outro livro germinal, com muitas variantes, uma delas recorrendo a Primeira Crônica Geral, e serviu de fonte a epopéias cultas; Roncesvales, cujo título completo deve ser O Verdadeiro Sucesso da Batalha de Roncesvales, por Francisco Garrido de Villena, editado em Toledo, em 1583; Palmerim de Oliva, versão anônima, recorrente do Amadis de Gaula; Palmerim da Inglaterra, do português Francisco de Morais, editado em Évora, em 1567; Dom Belianis, atribuído a Friston, que o escreveu em grego, passando para a Espanha traduzido por Jerônimo Fernandes; Tirante, o Branco, do valenciano Joanot Martoreli, continuada por Marti Joan de Galba e publicada em 1490, considerada a melhor novela catalã medieval; a Diana, de Jorge Montemayor; Diana, a Segunda, de Salmantino, de Alonso Pérez, 1564, e que é uma das muitas continuações, como Diana Apaixonada, de Gaspar Gil Polo; Os dez livros de Fortuna do Amor, de Antonio de Lofraso, Barcelona, 1573; O Pastor de Ibéria, de Bernardo da Veiga, Sevilha, 1591; Ninfas e Pastores de Henares, de Bernardo González de Bombadilla, Alcalá, 1557; Desengano do Zelo, de Bartolomeu López; O Pastor de Fílila, de Luiz Galvéz de Montalvo, 1582, imitação de A Arcádia, de Sanazaro; Tesouro de Várias Poesias, Madri, 1586; Cancioneiro de Lopez Maldonado; A Galatéia, do próprio Cervantes, 1584; A Araucana, de Alonso de Ercilla e Zuñiga, sobre um episódio de guerra no Chile; A Austríada, de Juan Rufo, poema épico tratando da guerra de Lepanto, editado em 1584; O Monserrate, de Cristovão de Virués, de 1587;As Lágrimas de Angélica, de Luiz Barahona de Soto. Os livros pertencentes ao Engenhoso Fidalgo Dom Quixote da Mancha, que se fez cavaleiro, retratam a época, os gêneros, os estilos, e a vida do velho mundo, entre o medievo e o renascimento, quando Miguel de Cervantes se fez o maior dos autores das sagas aventurosas do seu tempo. Permitida a reprodução desde que citada a fonte “Pesquise – Pesquisa de Sergipe / InfoNet”

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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