O ator e diretor australiano Mel Gibson, projetado internacionalmente pela série Mad Max, de três filmes – o primeiro em 1979 – voltou ao cartaz dirigindo A Paixão de Cristo, que tem batido recordes de bilheteria, em várias partes do mundo. Gibson tem uma filmografia de grande público, destacando-se os Máquina Mortífera, série de quatro filmes, sempre com Denis Glover como parceiro, – 1985, 1989, 1993 e 1998 -, também foi diretor de Coração Valente, 1995, sobre a independência da Escócia, indicado 11 vezes ao Oscar e 5 vezes premiado, incluindo o filme e a direção, e estrelou O Patriota, 2000, tratando de episódios da independência dos Estados Unidos. A Paixão tem recebido críticas e aplausos, de um lado pela violência mostrada na tela cheia, de outro por tratar de um tema recorrente na história do cinema, retirado da própria história da humanidade cristã. Não é um romance biográfico de Jesus, mas uma apresentação, compacta, do martírio e da morte de Cristo, impregnada dos traços básicos de uma cultura religiosa universal. O filme denso, tenso, flui como um registro, como se fosse possível, dois milênios depois, recontar um capítulo histórico recompondo cenários, situações, atitudes. O filme, predominantemente falado em aramaico, o que é uma novidade desafiante ao mercado “hollywoodiano”, expõe as relações entre uma colônia sob controle e as autoridades prepostas, que administram os interesses dos dominantes. Relações que expõem sacerdotes judeus, centuriões romanos, Pôncio Pilatos, Herodes Antipas, num conflito de poder, para conter a influência de Jesus. De outra parte, o filme sublinha certas situações da comunidade formada por Jesus, reunindo os apóstolos e outros personagens próximos. Parece haver, deliberadamente, a intenção de deixar a figura mítica e mística de Jesus fora do foco político dos judeus e dos romanos. As falas do Cristo reforçam a sua isenção dos negócios internos, associado-o a uma utopia de outro mundo, outra vida, um pai celestial com o traçado do futuro, sob a força renovadora de um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. O filme evidencia, com sua linguagem, a conexão entre o fato da prisão, condenação, castigo e morte de Jesus, aceito resignadamente, com o conceito de humanidade, que o próprio Cristianismo criou. Segundo A Paixão de Cristo, a dor e o sofrimento estão associados na visão dos autores, não na da vítima, que tinha sua vida ligada a outras referências, que o tempo “religiojizou”. O filme, por ser expressão de uma extremidade – a paixão e a morte, as últimas horas, e não a vida, toda, de Jesus – cria uma atmosfera pesada, que as platéias tomam como forma de violência, recurso utilizado para mitificar o martírio, como artifício de valorização de um certo ideal de vida santa, presente em vários momentos da história do Cristianismo. A santificação de dezenas de personagens ligados à história do Catolicismo, por exemplo, tem ligações com provações e privações, sacrifícios exemplares, que modelaram o ideal do santo. Santa Genoveva (422-512) alimentava-se apenas de água e legumes; Santa Hedvirges, padroeira da Polônia, era de origem nobre, mas viveu comendo pão, legumes e bebendo água, dormindo apenas três horas, em leito feito de duas tábuas, sujeitando o corpo à flagelação, até morrer feliz, em 1243; São Pedro de Alcântara (1499-1562), que durante 40 anos só comeu de dois em dois dias, salpicava de cinza a comida e dormia duas horas por noite, chegando a recusar um copo de água, quando em agonia ardia de febre. Há muitos outros casos exemplares do ideal da vida santa, desde os primeiros tempos do Cristianismo e principalmente durante a Idade Media. Mel Gibson faz algumas experimentações no seu filme, trabalhando com técnicas conjugadas, que fazem o efeito pretendido, como a de recorrer aos flash back, reconstituindo diálogos perdidos, principalmente entre Jesus e sua comunidade. O olhar do Cristo, sob qualquer situação, era a senha disparadora para buscar cenas com as quais a narrativa era tecida. O filme põe o martírio, a paixão, no contexto frio da realidade histórica, como suposto de que ela deu vida e que não cabe duvidar-se da existência, nem da crucificação de Cristo. Assim também o faz com Judas, o traidor dos 30 dinheiros, malhado e enforcado para expurgar a chaga do seu comportamento. A iconografia de origem religiosa tem mostrado o corpo dependurado num galho de árvore, como o salário da traição, enquanto o filme vai mais adiante, com os apupos e com a malhação que precedem a forca. Há, sem dúvida, incorporação cultural que a tradição tem legado, como a reforçar o sentimento de justiça gerado pelo enforcamento. No populário brasileiro o Judas, representado por um boneco, muitas vezes associado à pessoas de imagens desgastadas, autoridades, políticos, é posto com a corda no pescoço, malhado e queimado, ampliando o castigo ao traidor, no sábado da aleluia. A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, há um tempo amplia e renova a filmografia sobre a vida e a morte de Jesus de Nazaré, que é repleta de êxitos, desde o célebre O Rei dos Reis, de 1927, dirigido por Cecil B. DeMille ao Rei dos Reis de Nicolas Ray, de 1961, tendo Jeffrey Hunter, com seus olhos azuis, no papel principal. Jesus de Nazaré, de 1976, dirigido por Franco Zeffirelli é outro filme referencial, feito inicialmente para a televisão, mantendo reverência à história da vida e da morte do Messias. Entre os filmes sobre Jesus há, ainda, Jesus Cristo Superestar, com trilha sonora de alta qualidade, assinada por Andrew Lloyd Webber, repetindo o sucesso alcançado na Broadway. Um dos últimos filmes, uma superprodução feita para a TV – Jesus -, de 1999, dirigido por Roger Young, com a participação da veterana Jacqueline Bisset. Mel Gibson com A Paixão de Cristo garante brilho à sua carreira de diretor de cinema, oferecendo uma contribuição que tem tudo para entrar na lista dos grandes filmes. Permitida a reprodução desde que citada a fonte “Pesquise – Pesquisa de Sergipe / InfoNet”