TRABALHO, FILOSOFIA E COMIDA

Ociosidade, vadiagem e preguiça sempre circularam próximos, no Brasil, embora existam diferenças semânticas entre os termos. O ócio jamais foi compreendido, principalmente quando revestido da dignidade, e a preguiça tomou fóruns adjetivos, marcando pessoas, comunidades, etnias, conotados na história, enquanto a vadiagem virou crime na legislação brasileira. Reproduzia-se, assim, conceitos antigos que vigoram ainda, como se fossem modelos disponíveis, aos quais as esferas do Poder recorreriam, em defesa dos seus interesses. A Província de Sergipe enfrentou sucessivas epidemias que sacrificavam a sua administração e penalizavam, gravemente, a sua população. Em todas as vilas e cidades eram contados os doentes e os mortos, numa estatística macabra que se repetia, mudando o rótulo e as patologias das doenças. Foram tempos difíceis, de resignação e de resistência, que precisou da força e da coragem dos habitantes do território sergipano. O resultado foi um quadro de pobreza, alastrado pelos engenhos, fazendas de gado, feiras e atividades comerciais e domesticas. No Relatório com que entregou a administração da Província ao Dr. Tomaz Alves Junior, em 15 de agosto de 1860, Manuel da Cunha Galvão deplora a situação e revela as providências que tomou para diminuir, por exemplo, os preços dos gêneros alimentícios, que rareavam. Muitas vezes o próprio Governo comprava farinha de mandioca e carne seca, para atender, como dieta básica, à população. A preocupação positiva do Presidente da Província contrasta com suas conclusões, desairosas para os sergipanos. É que, segundo Cunha Galvão, “era o ócio e a indolência a que se entregavam os habitantes, que em lugar de serem outros tantos produtores, eram apenas consumidores.” Importava enfrentar o problema extirpando o mal, por ele considerado, e desenvolver o amor ao trabalho. Diz ele: “Assim o fiz: reconhecendo que aos Juizes de Paz pela lei de sua organização competia velar para que não houvesse vadios e mendigos, recomendei-lhes encarecidamente o cumprimento daquele importante preceito da lei; pedi-lhes que fizessem o que estivesse ao seu alcance para acabarem com a ociosidade. Dirigi-me também ao Dr. Chefe de Polícia para que por seu intermédio e das autoridades policiais procurassem tanto quanto estivesse dentro da órbita de suas atribuições, obrigar o povo ao trabalho e abandonar a ociosidade fonte de tantos vícios.” As medidas não surtiram efeito, mas o Presidente continuava buscando alternativas, como diz: “Reconhecendo porém que todos estes meios não eram suficientes, e sobretudo não tinham peso no grande número de mulheres que abunda na Província e que sem o auxílio da nossa Religião eu não poderia realizar os meus desejos, dirigi-me a todos os vigários da Província, que nas suas prédicas exortassem o povo ao trabalho, por meio do qual obteria a abundância e a satisfação com o auxílio de Deus.” O efeito também não foi o esperado e o Presidente Cunha Galvão apelou para o Arcebispo da Bahia, Dom Romualdo de Seixas, o Marquez de Santa Cruz, pedindo uma Pastoral especialmente dedicada aos católicos sergipanos, recomendando-lhes que abandonassem os seus hábitos de ociosidade e indolência e se entregassem ufanosos ao trabalho. Em carta de 26 de maio de 1860, Dom Romualdo de Seixas manda a Pastoral, antes publicada no Jornal da Tarde, em Salvador. É um texto doutrinário, repleto de abonações e de notas, que posiciona a Arquidiocese da Bahia contra a filosofia do século das luzes, contra o socialismo utópico, o contrato social e outras novidades que começavam a circular no Brasil. A década de 1860 ganhava importância para Sergipe. O Imperador Pedro II, com comitiva, visitou a Província e conheceu de perto os seus problemas, deixando o seu estímulo para enfrentá-los. Aracaju, com cinco anos de Capital, estava ainda em obras. As febres do Aracaju continuavam intimidando os seus habitantes e viajantes. Tobias Barreto tocava o ensino do Latim pelos estudos, primeiro no Seminário da Bahia, depois na Faculdade de Direito do Recife, onde desembarcou, em 1862, para marcar com traços profundos a vida cultural e científica de Pernambuco, cabeça intelectual do norte do Brasil, onde anos depois o Catecismo Positivista, de Augusto Comte, editado em 1852, ditava o conhecimento renovado, difundindo as descobertas científicas que levariam a Igreja, em 1869, a convocar o Concílio Vaticano I, para firmar compromisso com a fé como dogma e a infalibilidade papal. Dom Romualdo de Seixas apoia sua exortação ao trabalho nas teses de Guillois, (Explicação do Catolicismo) de que “ a preguiça não consiste somente em dormir com excesso, em passar uma vida ociosa e indolente; mais ainda em desprezar os próprios deveres, quer temporais, quer espirituais. Pode-se ser preguiçoso e com tudo estar sempre em movimento; assim um moço que prefere o jogo ao estudo é um preguiçoso; um pai de família que em lugar de velar sobre seus filhos e domésticos, não se ocupa senão de espetáculos, de divertimentos e passeios é um preguiçoso e merece esta qualificação ainda quando passasse cada dia na Igreja horas inteiras, porque estaria onde Deus não quer que ele esteja; uma mãe de família que em vez de cuidar na sua casa, emprega todo o seu tempo em visitas inúteis em leituras frívolas, é uma preguiçosa; um jornaleiro (jornadeiro) que trabalhasse desde manhã até a noite, mas que não tivesse senão indiferença para tudo o que pode contribuir a sua salvação, e um preguiçoso.” Na verdade, o pedido feito pelo Presidente da Província ensejou todo um discurso católico, alicerçado no magistério moral da Igreja, alimentado pelas teorias que desde Aristóteles estimula uma reação ao desenvolvimento social e filosófico da humanidade. E reforça os ensinamentos bíblicos sobre o trabalho, sua origem religiosa, na síntese de Paulo, em Carta aos Tessalonissenses: “Quem não trabalha não come”. João Silva Franco, descendente direto de escravos dos engenhos de Laranjeiras, que ainda vive com mais de 80 anos, é autor de uma trova perfeita, que responde, em quatro versos, ao esforço governamental e clerical em favor do trabalho: “Quem não trabalha não come/ é conversa muito falha/ porque só vemos com fome/ o povo que mais trabalha.” Permitida a reprodução desde que citada a fonte “Pesquise – Pesquisa de Sergipe / InfoNet”

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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