A sobrevivência de fatos folclóricos comprova o encanto que as coisas do povo causam nas pessoas. Sílvio Romero, por exemplo, passou os primeiros anos de vida com os avós, numa fazenda em Lagarto, fugindo dos surtos de impaludismo, varíola e cólera que grassaram na vila. Foi no contato com os escravos da fazenda Cachoeira, onde havia um engenho, que o menino Sílvio ouviu as primeiras estórias, contadas pela negra Totonha, escrava comprada em Simão Dias. Não foram apenas estórias, mas todo o repertório infantil, que causou profunda impressão no futuro escritor, crítico e intérprete da vida social brasileira. Além de Totonha, Zefa Nó, filha da também escrava Joana Nó, foi outra portadora de saberes populares, formando Sílvio Romero nas coisas lúdicas do mundo. Bacamarteiros do povoado Aguada – Carmópolis
Adulto, Sílvio voltou-se para a coleta dos fatos folclóricos, buscando reuni-los pela importância, esclarecê-los pela visão crítica, contextualizando-os como parte da história literária do Brasil. Desde que saiu de Sergipe, para estudar no Rio de Janeiro, e depois no Recife, que Silvio Romero levou consigo um pedaço da alma sergipana, não apenas da sua Lagarto, mas de Estância e de outros municípios, graças à pesquisa direta e a contribuições de parentes e amigos, num hábito pessoal que jamais foi modificado. Quando esteve em Parati, como juiz de Direito, ou em Juiz de Fora, procurando lenitivo para a saúde afetada, ou Niterói, onde viveu durante muitos anos ou em Campanha, em Minas Gerais e em outros lugares mineiros, no Recife e por onde passou, Sílvio Romero manteve um caderninho de notas, fazendo um registro que serviu de base aos seus livros.
Samba de roda de Laranjeiras |
O folclore, como parte tanto visível quanto sensível da cultura, exteriorizado pela sua própria natureza, vicejou em torno dos engenhos de açúcar e das fazendas de gado, que eram expressões de riqueza. O folclore era a dança, o folguedo, a representação teatral, as rezas, magias, girando em torno de festas e de ciclos de festas, mais do lado de fora, do que de dentro da casa, e quando no interior da casa, mais na cozinha, do que na sala. Na sala estavam os exemplares artísticos: os quadros, com retratos a óleo, pendurados nas paredes, as imagens, em consoles ou ninchos, também citados como oratórios, ou nas pequenas capelas contíguas, o mobiliário de estilo, as alfaias, as porcelanas monogramadas, toda uma atmosfera, enfim, de contraste com as manifestações populares, de negros e de mestiços.
O declínio econômico apagou o fogo dos engenhos, as usinas não resistiram, as casas grandes foram praticamente abandonadas e com elas os exemplares de arte foram, aos poucos, desaparecendo nos testamentos das heranças, nas vendas, nos penhores, no empobrecimento da oligarquia rural. O folclore, mesmo não tendo mais em torno do que orbitar, como cultura de dependência, como alegoria de festa, como entretenimento, permaneceu vivo, na sucessão da oralidade, como um bem sem disputa, sem valor econômico, sem herdeiros legítimos, além dos que aprendiam com os outros as mesmas folias. São Gonçalo do povoado Mussuca – Laranjeiras
Ainda hoje, em áreas que já foram ricas, como Laranjeiras, Japaratuba, o folclore que resistiu e vive, parece estar associado aos pobres. Por causa da roupa, que é de pobre, dos enfeites, instrumentos, calçados, que apenas disfarçam a situação própria dos figurais, que desfilam as suas antiguidades pelas ruas, nas festas cíclicas, notadamente religiosas. Ainda que apresente, aos olhos de turistas, visitantes, pesquisadores, esse parentesco com a pobreza, o folclore vive, sobrevive, permanece guardando tesouros incalculáveis, nos quais residem os valores mais antigos e recorrentes da história humana e da cultura da humanidade.
Naqueles homens simples, naquelas mulheres tímidas, como que entranhadas sobrevivem as variantes de saberes dos quatro cantos do mundo, repetidos nos gestos, nas palavras, nos ritmos e nos movimentos, como um caleidoscópio de arquétipos. Quando uma criança, homem ou mulher, faz sua iniciação no ambiente da cultura popular, garante a continuidade dos repertórios, aos quais, com certeza, um dia se precisará recorrer, para buscar a identidade. Pode até ser uma ironia, mas no Brasil a fonte identificadora do brasileiro está entre os pobres, nas múltiplas manifestações da arte popular, de cultura intuitiva, espontânea, lúdica, que exprime a vida, mas mostra também a alma.
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