O IDEAL DA VIDA SANTA

A morte do Papa João Paulo II, precedida de grande sofrimento físico que limitou seus movimentos, falas, viagens, ações com as quais tinha completa identificação, trouxe para a atualidade o ideal da vida santa, comum na Idade Média e na história da Igreja, na luta contra os turcos, sarracenos, árabes em geral, também presente quando das descobertas das terras do Novo Mundo, como virtude inseparável do cristão.

 

Na Idade Média homens e mulheres adotavam a flagelação, o martírio resignado do cilício (pequena túnica ou cinto, ou ainda cordão de crina, de lâ áspera, alguns com farpas de madeira, que por penitência vestido diretamente sobre a pele). Mais que o uso e o sacrifício voluntário do cilício, as mulheres, e dentre elas as virgens consagradas alimentavam-se apenas de legumes e água, ou, como os homens, refugiavam-se nos cantos mais toscos, construídos para o sofrimento, em busca da santidade.

 

Santa Genoveva, que viveu entre os anos de 422 e 512, por exemplo, comia apenas legumes e água. O mesmo fazia Santa Hedwiges, Padroeira da Polonia, que embora sendo de origem nobre comia pão, legumes e bebia água, dormindo em leito de tábuas, por apenas três horas por noite, sujeitando o corpo à flagelação, até morrer, feliz, em 1243. São Pedro de Alcântara, dois séculos depois (1499-1562) durante 40 anos só comia de dois em dois dias, e mesmo assim salpicava a comida de cinza, dormindo duas horas por noite. Perto de morrer, ardendo em febre, já em agonia recusou o copo de água que lhe ofereciam.

 

A luta contra os infiéis que reeditou o ideal da vida santa e se transformou num caminho de salvação e de santificação, foi projetada nos contatos catequéticos. Cada Caravela que saia da Espanha ou de Portugal, na aventura marítima que dilatou a cartografia do mundo, levava “línguas”, intérpretes que dominavam as línguas dos árabes e judeus, e eram os primeiros a descer para os contatos, na suposição de que as terras ignotas eram habitadas por esses povos inimigos da fé cristã. Os povos das praias e florestas, descobertos pelos navegadores espanhóis e portugueses, estavam fora da história cristã, pois nem descendiam de Sem, nem de Cam, nem de Jafé, os filhos de Noé que repovoaram o mundo após o Dilúvio.

 

No caso dos indígenas, chamados de Gentios, porque pagãos e não pertencentes ao gremio de Israel, foi necessário que o Papa, em 1537, editasse uma Bula, a pedido dos dominicanos, reconhecendo-os como “ pertencentes a espécie humana e dispunham de alma como os seus colonizadores.” Com os negros, que eram escravos estrangeiros, a preocupação passou a ser a de controlar suas crenças e seus costumes. Os mestiços, nascidos dos vários cruzamentos, sofreram a rejeição clara e aberta dos jesuítas e de outros religiosos de ordens que catequisavam no Novo Mundo.

 

O ideal da vida santa passava, portanto, a compor, no Brasil e na América, uma capítulo do Projeto Cristianizador Ibérico, utopia de países de homens puros, sem pecados, destinados à reconstrução da idéia do paraíso bíblico, fosse pela natureza dadivosa, fosse pela cultura regrando os comportamentos pessoais e sociais. A Catequese, empreendida no Brasil após a instalação do Governo Geral em 1549, foi reforçada grandemente pela Visitação dos Inquiridores, reforçando os controles da organização social. Os predicadores galgaram, como foi o caso do padre José de Anchieta, a posição de aspirantes da santidade, beatificados pelos seus esforços junto aos indígenas e aos negros das terras brasileiras. Por muito tempo os embates ganharam corpo, sob a vigilância acurada dos colonizadores e seus auxiliares. Também no Brasil, como aconteceu em várias partes do mundo, o magistério moral da Igreja, principal atributo de conversão e de fé, no trânsito entre a vida e a morte, atravessou a história, marcando-a.

 

No século XIX o combate esteve dirigido contra a ciência e a filosofia que ela modificava. Depois vieram os temas econômicos, fundindo mais valia com materialismo, organizando novas classes, não mais etnias, mas contingentes unidos por interesses difusos, crescentes e exigentes no corpo das sociedades. De São Marcelino de Champagnat (1789-1840), por exemplo, diz-se ter recebido de Deus, segundo o Papa Bento XV, a missão de por de sobreaviso o mundo contra os “falsos profetas”, aqueles que se apresentavam como defensores dos direitos dos povos, anunciando era de liberdade, fraternidade, igualdade, mas que não seriam reconhecidos porque eram lobos que estavam disfarçados de ovelhas. O combate às luzes seguia no século seguinte, pois a Igreja, com o Papa Pio XII, fez de São José Operário, em 1937, o Padroeiro dos que combatem o comunismo ateu.

 

O Papa João Paulo II foi peça fundamental no desmonte dos Estados socialistas europeus, com enorme repercussão em todo o mundo. Essa forma de luta, tal qual o sofrimento físico do sumo pontífice, adornam o ideal da vida santa e a condição de sua candidatura a santo da Igreja, o que servirá de grande estímulo às novas gerações de católicos, em todo o mundo. A espetacularização da morte do Papa João Paulo II, transmitida em tempo real, é um ingrediente novo, com poder comunicante de grande alcance, realçado pela solenidade em si, que contou com autoridades e líderes religiosos de várias partes do mundo.

 

Permitida a reprodução desde que citada a fonte “Pesquise – Pesquisa de Sergipe / InfoNet”. Contatos, dúvidas ou sugestões de temas: institutotobiasbarreto@infonet.com.br.

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