Uma lei que virou costume e desapareceu

Marquês de Pombal
Quando o Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo, 1699-1782) editou sua Pragmática (conjunto de considerações, de natureza legal; sanções; lei promulgada com toda a solenidade), em 17 de agosto de 1762, combinada com lei de 4 de fevereiro de 1765, que vigorou em anexo às Ordenações do Reino, por muito mais de cem anos, o luto era mais que um sentimento de tristeza e de saudade, era uma obrigação legal, bem definida e bem exigida.

A lei começava por impor luto de seis meses pelas pessoas reais, colocando-as na frente dos familiares, muito embora fosse também de seis meses o luto pela própria mulher, pelo marido, por pais, avós, bisavós, por filhos, netos e bisnetos. De quatro meses era o luto legal pelo sogro, ou pela sogra, pelo genro ou pela nora, pelos irmãos e pelos cunhados. Era de dois meses o luto pelos tios, pelos sobrinhos e pelos primos co-irmãos, que no Brasil são conhecidos como primos carnais. Para os parentes mais remotos o luto era de quinze dias. As crianças que morriam antes dos sete anos não mereciam o luto, qualquer que fosse o grau de parentesco.

O luto se dividia em rigoroso e aliviado, podendo ser cumprido dessa forma, pela metade do tempo. Ou seja, a lei aceitava que depois de cumprida a metade do luto, este fosse aliviado. O verdadeiro luto, fechado, começava com a lã, para o pesado,  e na segunda metade passava para a seda, configurando o aliviado. A lei disciplinava, ainda, outros usos que caracterizassem, de forma sisuda ou tolerante, o luto imposto, inclusive a militares, ou pessoas de uniforme, que usavam, obrigatoriamente, fumo ou crepe preto, no braço esquerdo, na espada e no chapéu. A distinção entre o luto fechado e o luto aliviado estava na posição do fumo: os primeiros, no ante-braço, os outros no braço, acima do pulso.

No Brasil, por muito tempo, o luto marcou as emoções dos brasileiros. Mesmo que a lei não vigorasse, em todos os seus detalhes, era como o uso de roupas pretas, num trajo completo, que incluía os sapatos. Outros tinham a camisa como peça do luto. Era também muito comum o uso de uma fita, ou como laço, no peito junto ao bolso, ou no braço, indicando o sentimento, a dor, a falta, o sofrimento. O tempo foi tragando tais costumes, fazendo-os desaparecer. O que resta, ainda hoje, e no interior, tem semelhança com o hábito de vestir preto, como luto, durante a quaresma, antecipando a dor solidária com o martírio e a morte de Jesus.

O Marquês de Pombal, que administrou Portugal e realizou obra admirável, como a reconstrução de Lisboa, destruída parcialmente por um terremoto, em 1755, o combate e expulsão dos jesuítas, a organização do ensino elementar, o respeito aos indígenas, fez esforço renovador em todos os campos, mas deixou em vigor uma legislação anacrônica – as Ordenações do Reino, manuelinas, felipinas, afonsinas, além das Leis Extravagantes de Dom Duarte – que vigorou longevuamente, tanto em Portugal, como no Brasil. Essa longevidade pode responder ao processo de incorporação, pelo povo, de valores que transitaram, no uso individual e social, da lei para o costume, desmentido a regra de um Direito consuetudinário, resultado da transformação do costume em lei. Em muitos casos, no Brasil, o que prevaleceu foi o contrário, o Direito, principalmente a norma escrita, virar costume, folclorizando-se pela aceitação.

 

Ferrar alguém no rosto, colocando uma marca pessoal, monogramática, usada pelo cangaceiro Zé Baiano, não era, como se pode supor, apenas um requinte de dominação e crueldade, era, antes disto, uma pena, uma sentença das Ordenações do Reino. É possível, então, rastrear a lei, sua transformação em costume e seu desaparecimento, como no exemplo do luto.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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