Desde 1937 que o Brasil legislou sobre a proteção ao patrimônio histórico, artístico e cultural, estabelecendo o instituto do Tombamento dos bens que, sob a ótica das repartições do Governo, deveriam ser protegidos. A legislação federal delegava aos Estados uma atuação complementar, com os mesmos fins. Ganharam visibilidade, então, as cidades construídas no tempo do Brasil colônia, ostentando a riqueza mineral, em Minas Gerais, a grandeza do café, entre o Rio de Janeiro e São Paulo, e o apogeu do açúcar, no Nordeste. Em Sergipe, São Cristóvão e Laranjeiras ganharam o olhar protetor do Estado, como mostruário do fausto que marcou a vida dos homens do açúcar e do gado.
As leis protegeram, em certo sentido, aquilo que representava o glamour dos endinheirados, deixando de fora a periferia das senzalas e das fazendas de gado. O açúcar decaiu e com ele muito da arquitetura das usinas ruiu como efeito da decadência econômica. Bens tombados, tombaram. Velhas igrejas e capelas cerraram as suas portas, compulsoriamente solidárias com o fogo morto das chaminés da indústria. A sociedade, que deveria ser beneficiária da política de proteção, demorou a tomar consciência sobre a importância do patrimônio que o Brasil erigiu, no contexto do processo de ocupação, colonização e civilização do País. Alguns poucos programas internacionais de financiamento interferiram no cenário das vistosas construções: Plano de Restauração das Cidades Históricas, para fins turísticos, na década de 1970, e, mais recentemente, um programa patrocinador de restaurações. São Cristóvão e Laranjeiras, mais uma vez, foram protegidas, juntamente com outros bens existentes em Sergipe, como Tomar do Geru, Divina Pastora, e outros.
Aracaju ficou de fora, talvez porque fosse considerada uma cidade nova, ainda em construção. O preconceito contra a juventude da capital sergipana significou imenso e irrecuperável prejuízo. Centenas de casas, que espelhavam o processo de evolução da paisagem aracajuana, foram ao chão, substituídas por postos de gasolina, condomínios de apartamentos, bancos, repartições, etc. Da parte dos proprietários, agigantou-se o erro de considerar propriedade privada a vizinhança, o entorno, a paisagem junto ou próxima do bem demolido. Da parte governamental, a falta de uma política e de uma legislação, e a complacência diante de casos absurdos, quando não os exemplos de descaso, que podem ser contados facilmente, pelo olhar dos transeuntes.
Os tempos estão mudando. O Ministério Público Federal tomou a iniciativa de convidar autoridades, professores, especialistas, e outras vozes, para um Seminário que inaugurou o debate sobre a questão do patrimônio histórico, artístico e cultural de Aracaju. Um sucesso, sob todos os aspectos, que gerou um documento – a Carta de Aracaju, discutido em voz alta, a partir das questões afloradas durante o evento, consolidando com a expressão crítica produzida pela Mesa Redonda que fechou o Seminário. Professores e estudantes, cada um com sua visão preocupada com a realidade, deram lições de consciência política, estribados em leituras críticas que deram ao Seminário momentos eloqüentes de participação.
O Seminário foi uma partitura regida pela Procuradora Lívia Tinoco, que apesar do pouco tempo na cidade demonstrou seu amor à primeira vista a Aracaju, pensando e realizando o evento, conduzindo o debate para firmar, ao seu final, um texto de claros compromissos com a cidade do Presidente Inácio Barbosa e de outros administradores. Elevado em suas exposições e debates, livre enquanto torneio de opiniões, sincero com a história, o Seminário da Procuradoria da República abriu uma estrada nova, pela qual deverão transitar, nos próximos tempos, ideários que enxerguem a paisagem como um bem comum, espraiada do rio ao mar, como o espaço da vida, que desde 1855 atraiu os sergipanos. A propriedade é da porta para dentro, o que significa dizer que as fachadas, as construções, não podem ser tragadas pela voracidade dos interesses. É francamente possível, e totalmente recomendável, que velhas e novas imagens da cidade convivam harmoniosamente, burilando a beleza que o bom gosto e o poder aquisitivo têm garantido a Aracaju. É desejável guardar imagens anteriores, sem que seja preciso impedir as atividades da construção civil. Para tanto, o tabuleiro de Pirro deve passar por uma releitura técnica, que defina como deverão ser resguardadas as paisagens que formam o patrimônio como bem social, bem assim como o saneamento, o embelezamento e o florestamento devem ser garantidos à continuidade do processo de crescimento harmonioso da cidade.
Ficou acertado que o documento que expressa o olhar protetor sobre o patrimônio histórico, artístico e cultural de Aracaju – a Carta de Aracaju deveria circular amplamente, para concorrer com a tomada de consciência, urgentemente necessária. Também ficou certo que outros Seminários devam ser promovidos, com o mesmo propósito esclarecedor e pedagógico.