O Romance de Carmelita

 

 

            As pesquisas em torno da cultura popular no Brasil visaram muito mais identificar variantes de temas universalizados pelo interesse moral, do que recolher manifestações próprias e interpreta-las no contexto cultural das raças combinadas. O sergipano Silvio Romero, sem prejuízo da recolha que fez de textos europeus, quis marcar a sua obra com as contribuições locais, de indígenas, negros, colonos brancos e mestiços, chegando a discutir teorias com Teófilo Braga para defender suas posições radicais.

            No seu livro de Cantos Populares do Brasil, Silvio Romero divulga versões de poemas nordestinos, curtos como as quadras, comuns como as sextilhas, cantados, recolhidos da memória do povo, alguns deles reescritos, como O Boi Espácio e o Rabicho da Geralda, que José de Alencar divulgou no jornal carioca O Globo, em 1874, sob o título geral de Nosso Cancioneiro. A posição radicalizada do escritor sergipano responde, na lonjura do tempo, pela sobrevivência de uma literatura mestiça, usual nas camadas populares, notadamente no Nordeste brasileiro, mas pouco acolhida nos manuais literários.

            O Romanceiro tradicional, e dentro dele o romanceiro fronteiriço, opondo cristãos e mouros como personagens invariantes, tem uma nacionalidade no contexto de histórias e culturas identificadas numa determinada civilização do mundo. As motivações, mais que temáticas, servem para afirmar valores com os quais algumas sociedades estabeleceram seus domínios e territórios. Os romances foram até onde a civilização levou, fosse entre lutas e conquistas no mundo velho, fosse nas entradas inaugurais do Novo Mundo, aí embalados pelas ondas do mar desconhecido, quando os missionários cantavam para tornar a viagem menos cansativa. Os romances, como disse Frei Tomás de la Torre, no seu relato sobre o cruzamento do oceano Atlântico, em 1844, foram conotados com os seus propósitos religiosos e, em conseqüência, morais.

Os romances  produziram, no Brasil e na América espanhola, ampla coleta e ensejou estudos críticos de elevado nível, comparável com os estudos de Menendez Pidal, e de outros exegetas de tais estórias cantadas. No Brasil moderno, o nome de Bráulio do Nascimento tem corrido como o principal mestre do trabalho interpretativo e tipológico, que ambienta o romance nas terras brasileiras, estabelecendo os pontos de contato, ideológicos e estéticos, necessários à identificação da poesia tradicional.

            O Romance de Carmelita, comum entre os vaqueiros nordestinos, é uma espécie de matriz, da qual descendem diversos outros romances, cantados com a mesma melodia, e com a mesma medida dos versos e estrofes. As trocas, que podem ser vistas como adaptações, asseguram semelhança ao modo de compor e de cantar, singular no universo popular, devendo sugerir uma nova conceituação que mostre filiação formal aos tipos de romances portugueses e espanhóis, alguns deles transformados pelos mestiços brasileiros, como queria o próprio Silvio Romero, ao classificar e publicar sua Antologia.

            A tradição de romances de vaqueiros e dos aboios conserva a melodia única e a temática que abarca personagens permanentes, em tudo equivalentes aos personagens do romance tradicional. O Rei /O Fazendeiro; O Cavalheiro/O Vaqueiro; O Reinado/Os Campos dos Gados, personagens e cenários. A ação transcorre no ambiente típico das vaquejadas, como torneios corriqueiros, lado lúdico dos criatórios que foram, no Nordeste, durante muito tempo, base da economia nordestina.

                                  

 

 

O Romance de Carmelita

 

           


1          Chegando o mês de novembro,

            Dando as primeiras chuvadas,

            Reúne-se a vaqueirama,

            Em frente a casa caiada,

            Pra ver se nos campos vastos,

            A rama já tá molhada.

           

2          O vaqueiro da fazenda,

            É quem se monta primeiro,

            Em seu cavalo castanho,

            Bonito e muito ligeiro,

            E vai pros campos pensando,

            Na filha do fazendeiro.

 

3          Corre dentro da catinga

            Rolando em cima da sela,

            Se desviando de espinho,

            Unha de gato e favela,

            Abóia em verso falando

            Na beleza da donzela.

           

4          E dedica o seu aboio

            A Vaca mansa e bonita,

            Tendo lugar no chocalho,

            Um lindo laço de fita,

            Seu nome é Rosa do Prado,

            Um mimo de Carmelita.

 

5          Peço desculpa aos vaqueiros,

            Em frente a casa caiada,

            Um cabra de voz bonita

            Sai cantando uma toada,

            Que a filha do fazendeiro,

            Fica logo apaixonada.

 

6          Carmelita quando vê

            O seu amor verdadeiro,

            Todo vestido de couro,

            Começa no desespero,

            Mamãe deixa eu ir embora

            Na garupa do vaqueiro.

 

7          O vaqueiro adoecendo,

            Coloca os couros na cama,

            Pelo campo o gado urra,

            Como quem por ele chama,

            Na porteira do curral

            Berra toda a bezerrama.

             

Diz ele quando eu morrer

8          Coloquem no meu caixão,

            Meu uniforme de couro,

            Perneira, chapéu, gibão,

            Pra eu brincar com São Pedro,

            Nas festas de apartação.

 

9          Não esqueçam de botar,

            As esporas e o chapéu,

            O retrato do cavalo

            Que eu sempre chamei Xexéu,

            Pra eu brincar com São Pedro

            Nas vaquejadas do céu.

 

10        Diz ele quando eu morrer,

            Não quero choro nem nada,

            Quero meu chapéu de couro

            E uma camisa encarnada,

            Com umas letras bem bonitas:

            Foi o Rei da Vaquejada.

 

11        Termino me despedindo

            Das terras, dos tabuleiros,

            Dos grotões e das chapadas,

            De todos os bons vaqueiros,

            Dos currais e das famílias

            De todos os fazendeiros.

 

12        Não esqueçam de botar,

            As esporas e o chapéu,

            O retrato do cavalo

            Que eu sempre chamei Xexéu,

            Pra eu brincar com São Pedro

            Nas vaquejadas do céu.

            Diz ele quando eu morrer,

13        Não quero choro nem nada,

            Quero meu chapéu de couro

            E uma camisa encarnada,

            Com umas letras bem bonitas:

            Foi o Rei da Vaquejada.

 

14        Termino me despedindo

            Das terras, dos tabuleiros,

            Dos grotões e das chapadas,

            De todos os bons vaqueiros,

            Dos currais e das famílias

            De todos os fazendeiros.

           

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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