A circunstância de uma decisão de Copa do Mundo entre as equipes da Holanda e da Espanha motivou, na imprensa espanhola, principalmente no jornal El Pais, uma revisão de fatos que marcaram a história dos dois paises, ocorridos nos séculos XVII e XVIII, nos quais o Brasil aparece, por ser Colônia portuguesa. O mote que levou à invocação da história está na letra do hino holandês, cantado na África do Sul, antes da disputa futebolística, que daria o título de campeão do mundo à Espanha. O hino da Holanda canta a rebelião dos Países Baixos contra o Império espanhol, ou mais especificamente Flandes, como David, e Espanha, como Golias.
A primeira estrofe do hino Her Wilhelmus (Guilhermo, em holandês), que é a que é cantada em solenidades oficiais, é branda e proclamava sempre a lealdade ao monarca espanhol. Mas, os versos seguintes, das demais estrofes, demonstram o quanto ficou de ressentimento: “Minha alma se atormenta/ oh novo povo fiel/ vendo como o afronta (envergonha)/ o espanhol cruel.” Felipe II, rei da Espanha, mandou, em 1567, para Flandes, como governador, o Duque de Alba – Fernando Álvares de Toledo (1508-1582), que marcou sua presença pela intolerância contra os protestantes, excessivos impostos, violação dos privilégios das cidades provinciais. Suas decisões militares foram destrutivas e as vezes atrozes, promoveu editos draconianos, condenações à prisão, tortura e sentença de morte.
De outro lado, representando os interesses de Flandes estava o Príncipe Guilhermo, de Orange e Conde de Nassau (1533-1584), O Taciturno, considerado pai da pátria, que dirigiu a luta dos Países Baixos por sua independência, unindo as forças da nobreza rural, da burguesia urbana, da igreja e das classes populares contra o império, tornando-se herói nacional, espécie de oráculo e general do processo de independência de Flandes, em 1581), que marcou o Estado moderno dos Países Baixos, sendo ainda o ponto de partida da ascensão neerlandesa. Historiadores como Fernando Garcia de Cortazar, autor da Breve História da Espanha, Ricardo Garcia Cárcel, Maurito Ebben, são citados, modernamente, na releitura do conflito de 80 anos entre Espanha e Flandes, que não poupou Portugal e nem o Brasil.
A evocação do período litigioso entre Espanha e Países Baixos, de motivação desportiva, chama atenção para a releitura de textos antigos e recentes, que desnudam os fatos, com suas conotações. Assume relevância que a guerra foi, também, religiosa, opondo católicos e protestantes, ou um duelo entre a fé tradicional, representada pelos espanhóis, e a fé reformada, defendida pelos neerlandeses. O Catolicismo enfrentaria turbulências no curso do tempo, particularmente no século XIX, quando a ciência e a filosofia disseminavam novos saberes, em oposição ao velho saber de salvação, que levou a hierarquia da Igreja a realizar o Concílio Vaticano I, nos anos de 1869 e 1870, responsável pelo dogma da fé e pela infalibilidade do Papa.
O Protestantismo retorna à cena, quase três séculos depois, espalhando suas missões pelos cantos do mundo, apresentando uma nova teologia e instalando igrejas, como a de Laranjeiras/SE, em 1884. Não sem razão, os protestantes eram execrados nos livros e jornais católicos, apontados como obstáculos ao sucesso da religião católica romana. O Brasil não esteve imune ao movimento missionário protestante, à época em que o saber científico, novo e livre, demonstrado pelos líderes do conhecimento, que ofereciam à reflexão a última palavra sobre as descobertas que esclareciam sobre o mundo e sobre a vida que nele há.
O Brasil, colônia de Portugal e Portugal que foi dominado pela Espanha e pelo reinado de Felipe II e outros Felipes, de 1580 a 1640, atravessou com problemas esses anos que marcaram a história da Europa. Espanha, Portugal e Holanda degladiaram seus interesses, enquanto o Brasil se tornava palco de disputas que não eram dos seus propósitos. Perdeu, por exemplo, a liberdade que gozava no território, desde o rio São Francisco até o rio Real, foi conquistado pelas armas de Cristóvão de Barros, e ocupado por soldados daquela guerra e colonos que ganharam sesmarias para lavouras e criatórios. A presença de Espanha e de Holanda projetada em Sergipe freou o esforço, mesmo ainda tímido, de progresso da terra sergipana. O ritmo lento da colonização atrasa o desenvolvimento econômico e social em quase dois séculos. Daí a importância da Emancipação Política de 1820-1824, que acabou com a sujeição a Bahia e criou meios de superação, projetados no acervo dos frutos da liberdade econômica, política e social.
As entranhas do conflito entre a Espanha e os Países Baixos, que motivam avaliações dos historiadores, recomenda que também se faça, no Brasil, uma revisão de leitura sobre aquele tempo de guerra. O domínio espanhol, como a presença dos holandeses, cognominada de “invasão,” são temas permanentes para a compreensão do Brasil, na quadra da disputa entre espanhóis e neerlandeses. Não é preciso a motivação da Copa do Mundo de futebol, para entender os opostos e tirar as lições da história. Nos campos da África do Sul prevaleceu a supremacia espanhola, com cara de uma revanche que inspirou comentários e reflexões de estudiosos. Ou seja: estão vivas as experiências históricas dos povos.