A estética do cangaço

Frederico Pernambucano de Mello, que figura entre os maiores pesquisadores e interpretes do cangaço, autor de dois livros essenciais à compreensão da força ilegal que aterrorizou as populações nordestinas: Guerreiros do sol: violência e banditismo no nordeste do Brasil (1985) e Quem foi Lampeão (1993), comparece mais uma vez à cena literária, com Estrelas de Couro – A Estética do Cangaço (São Paulo: Escrituras, 2010), com o qual recolhe parte substancial daquilo que denomina, objetivamente, de estética do cangaço.

Da mesma família do psiquiatra Ulisses Pernambucano de Mello e do grande Gilberto Freyre, Frederico Pernambucano de Mello tem chamado para si, já há algum tempo, a responsabilidade de reunir e contextualizar fragmentos da vida de Lampeão e dos seus rapazes, no cenário ecológico que o cangaço reinventou.. As indumentárias e adereços, que abarcam amplamente um modo especial de trajar e de compor a imagem dos combatentes da terra do sol, sem perder de vista as armas, instrumentos inseparáveis no cotidiano da saga dos cangaceiros.

No novo livro de Frederico Pernambucano de Mello, primoroso como objeto gráfico, a pesquisa revela um universo ampliado do conhecimento, coletado nos diversos Estados nordestinos. Sergipe está presente no álbum do pesquisador, através de fotos quase inéditas do personagem e seu grupo, tiradas na Fazenda Jaramandaia, de propriedade da família do Interventor Federal no Estado Eronídes Ferreira de Carvalho, e de textos de autoria do padre Artur Passos, registrando a presença, no povoado de Poço Redondo, no dia 19 de abril de 1929, do temido “rei do Cangaço.”

Vigário de Porto da Folha, o padre Artur Passos rezava missa mensal no povoado de Poço Redondo, quando virando-se para a Assembléia identifica o bando de Lampeão, que pede autorização para assistir o ato religioso. Relutando, de início, dar a autorização, o padre teve dúvidas. Ou expulsava do templo aquele grupo ameaçador, ou cumpria sua função de salvar almas, dando uma chance a Lampeão e grupo, composto de 10 pessoas. O padre deu permissão para que Lampeão e seus rapazes, todos nominados, com seus apelidos e idade, assistisse a missa, após o que houve um diálogo de palavras duras, da parte do vigário, e de considerações por parte do cangaceiro, que entregou nas mãos do padre um papel pautado, escrito a lápis, com o rol do grupo e com um pequeno texto negando as acusações que eram atribuídas aos cangaceiros, e responsabilizando as “forças”, ou polícias e volantes.

 

Frederico Pernambucano de Mello transcreve parte da descrição que o padre Artur Passos fez, nos jornais, do seu encontro, traçando um perfil da figura de Virgulino Ferreira da Silva, o primeiro a ser feito em Sergipe. A notícia da presença de Lampeão em Poço Redondo correu mundo, servindo para fixar uma data, muitas vezes repetidas no interior sergipano. Há pouco registro sobre esta primeira presença, documentada, de Lampeão no território sergipano. Com a notícia referenciada no livro de Frederico Pernambucano de Melo, Sergipe mais uma vez obtém o destaque como cenário de vida e da morte de Virgulino Ferreira da Silva. O padre Artur Passos descreve, assim, Lampeão:


        
“Alto, acaboclado, robusto, andar firme e compassado, cabeça um tanto inclinada, o olho direito inutilizado, com uma grande mancha branca, óculos brancos de aro de ouro, ou metal dourado, um sinal preto na face direita. Na cabeça, grande, alto, vistoso chapéu de couro, ainda novo, bem talhado, a imitar os antigos chapéus de dois bicos, com as pontas para os lados, tendo as largas abas da frente e de detrás erguidas e enfeitadas. Uma estreita tira de couro, ornada, o prende a testa, na outra a nuca, e uma terceira, ou barbicacho, ao queixo. Este chapéu fica, assim, bem seguro e apesar da altura não deve cair com facilidade. Cabelos estirados, cortados à nazarena, inteiramente bem barbeado. Blusa e calças perneiras de caqui. Aos pulsos – guarda-pulsos – de couro, de uns quatro dedos de largura. Anéis em todos os dedos, teria na ocasião uns cinco ou seis na mão direita e seis ou oito na mão esquerda. Duas grandes cartucheiras de um lado e duas iguais do outro, cruzam-se sobre o peito. À cintura, à guisa de cinturão, uma larga cartucheira com duas ou três ordens de cartuchos. Tudo bem enfeitado de ilhois e placas de metal. Na mão, inseparavelmente, arma terrível que tantas mortes já vomitou, no rápido crepitar, no lampejar contínuo do qual, segundo consta, se origina o seu nome de guerra. Esta arma não é um rifle. É sim um mosquetão de cavalaria, ou coisa semelhante: arma de cinco tiros, que tem o ponto curvo. Á frente, passando entre as cartucheiras, o já conhecido punhal, de uns três palmos, cabo e bainha de metal branco, arma forte, bonita, malgrado a aplicação que tem, de ótima têmpera. Com ela pelo cabo observei abrir, com facilidade, uma garrafa de conhaque sergipano, sem ultrajar a rolha. Ao lado e às costas, pendentes de fortes bandolheiras, as sólidas mochilas, bem recheadas de balas, formando uma larga e saliente roda, de grande peso. Tudo isto liga-se ao corpo de modo tal, que forma uma espécie de couraça fixa, sem prejudicar os movimentos rápidos. Ao voltar-se para qualquer parte e em qualquer posição, nada desse arsenal se desloca. Usa uma espécie de sapato de grossas solas e bem feitas. Trás esporas e rebenque e, ao montar, calça umas luvas de pano marrom que cobrem apenas as costas das mãos. No bolso das calças, donde várias vezes a vi retirar, uma carteira bem recheada, além da qual deve trazer, em um lenço ou carteira, sob a blusa, o grosso dos “cobres”. Anda sempre bem barbeado. E em qualquer casa de barbeiro, por onde passa, manda escanhoar, desembainhando o terrível punhal que conserva voltado para o operador, segue atento a operação. Em tudo guarda serenidade e presença de espírito. Este o homem.” (In Luiz Antonio Barreto, O Incenso e o Enxofre –O Encontro de Lampeão com o Padre – a representação, pessoal, do bem e do mal.

O texto do padre Artur Passos, antológico pela grandeza da descrição, produzido sob o forte impacto do encontro, é uma referência inestimável, à qual será sempre possível recorrer, notadamente agora, que em parte está transcrito no livro de Frederico Pernambucano de Mello.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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