Conta-se, não sei se tudo é verdade, que nos idos dos anos 1950, tempo em que governava Sergipe o Engenheiro Leandro Maynard Maciel, ocorreu um crime no mercado municipal da cidade de Capela, em pleno dia de feira, em que foi morto à faca, um sargento de polícia, tendo o assassino sumido e pouco identificado, o crime sendo cometido em sicária valentia, e à sangue frio.
Como acontece nesses casos, um folclore se armou florindo o feito e o fato, com semitons bem ao gosto de melhor fofoca.
O desfecho e suas causas bem mereceriam um roteiro de western espaguete, de Sergio Leone, talvez em aparência com “Três homens em conflito” (The Good, the Bad and the Ugly) de 1966, que aqui passou como “O bom, o mau e o feio”, estrelado por Clint Eastwood, Lee Van Cleef e Eli Wallach e solfejado bem ao gosto de Ennio Morricone, o genial maestro falecido esta semana.
Na trama capelense, tudo acontecera fortuitamente em consequência comum aos arroubos da juventude.
Um jovem, dizia-se então, valente e imprevidente, filho de um prócer do partido que exercia oposição ao Governador do Estado, metera-se numa confusão de bar que desagradara o destacamento policial da cidade, o seu Delegado e chefe do mando político local, que saiu em seu encalço, caçando-o como exemplar fora-da-lei.
Em tempos comuns e parecidos ao que vivemos agora, em que o Supremo Tribunal Federal caça, prende, julga e executa, pondo fora-da-lei o que lhe não é do agrado, a polícia sergipana invadiu a propriedade rural do pai do garoto, querendo lhe prender o filho perseguido.
Pelo que se dizia, o rapaz não tinha cometido nenhum crime, e se o tinha, não era nada comparado ao que viria por consequência.
Porque a Polícia, em tempo que não se documentava arbítrio por filme anônimo celular, chegou na fazenda em pompa e circunstância, quebrando tudo e distribuindo pancada em quem aparecesse.
Como o perseguido, bom cavaleiro, tinha fugido lesto, duas figuras sobraram para receber a porrada acrescida no logro e na frustração; um vaqueiro, um homem simples, cidadão honesto e trabalhador, desprovido da sorte, que no zelo da propriedade estava por fiel servidor, alguns passarinhos reclusos, e um papagaio, que a tudo via, vigiava e repetia, já que o Ibama ainda não existia.
Papagaio e vaqueiro sofreram todo tipo de tortura para dizerem onde se encontrava o “meliante” perseguido.
No comando da pauleira estava um sargento, de porte miúdo, espécie que era comum depreciar como “pintor de rodapé”, em tempos de outros crimes, menos politicamente corretos, embora fossem mais precisos e xistosos, tudo aquilo que era saboroso o comentar.
Comentaristas da época diziam que este “tamborete de anão” sentia na alma a ausência de porte, se comportando em extrema valentia e maldade, para com isso se valorizar encarnando temor.
Encarregou-se ele próprio em surrar o vaqueirinho, que replicava sem choro: – “Sargento, não se bate num home!”
– “Tu lá é home! Tu vai ver ‘cuma é’ um sargento enfastiado!”
Uso o “cuma é”, porque era dialeto corriqueiro daquele tempo. E o mesmo para o enfastiado!
Enfastiado, que seria algo como enjoado, conjugando fastio com impaciência, tudo bem ao gosto daqueles que gostam de espancar, exercer o poder de impor a outrem sua vontade e lei.
Conta-se, porque tudo é arrumação de relatos refeitos a título de quebra-cabeças, que a policia deixou a fazenda revirada, mobiliados quebrados, porcelanas espedaçadas, não sobrando uma xícara ou pires inteiros, um lençol ou roupa de cama que não fossem rasgados e desfigurados, criação de couro e de pena morto à bala, em exercício de pontaria, para consignar o poder moderador que o assunto exigia.
Quando a calma restou e os celerados fardados se retiraram, sobraram o vaqueirinho e o papagaio estropiados.
Como numa sinfonia épica, aos momentos de trauma seguem os dias luminosos e felizes porque a vida continua. “É vida que segue!”, como a comum indiferença dos homens que se creem infinitos e não mortais.
Eis que o cenário agora é a feira de Capela, num mercado recém inaugurado em que passeia despreocupado o mignon Sargento, quase um pigmeu, a fruir um inusual himeneu com a população que se curvava reverencialmente a sua passagem.
De repente alguém o toca pelas costas: – “Sargento, se vire pra morrer!”
Ao se virar, não entendeu o chamado, nem conheceu o vaqueirinho que lhe embainhava uma faca coração adentro, lhe seccionando a aorta para desenfastio de ambos, definitivamente.
Como lenitivo, destas horas, não houve socorro nem se ouviu gemido, também não restou testemunha nem arma do crime, ficando a história do malfeito bem vingado e executado, ficando impune o feito e bem pior explicado, afinal, desde priscas eras, quando falta justiça e o direito fracassa, o homem usa as armas que possui e a coragem que não o desanima.
Igual a Charlotte Corday, a heroína de Caen na Normandia, aquela que ousou ferir de morte em golpe igual a Marat, o sanguinário amigo do povo”, em acordes contrapostos aos sinistros tempos de Revolução Francesa.
Ah!, lá vou eu falar da velha Revolução novamente!
Mas, eu não tenho culpa de achá-la notável. Daí recordá-la para não mais a repetir, nem matando Reis, nem os vingando.
A Revolução Francesa não foi extraordinária pelas mortes que causou, mas pelas mortes que se sucederam, tanto do lado que as iniciou como daquele que as vingou, quando a foice tomou vida e descobriu que todos os pescoços eram iguais.
Porque em tempos distantes da “Revolução dos Bichos”, e de George Orwell dizer que os animais eram iguais, bem falavam e filosofavam, os franceses já o repetiam, não por pedantismo, mas enquanto cidadania e, sobretudo, por sonoridade vazia: “les hommes sont égaux… mais il y en a qui sont plus égaux que d’autres. (Todos os homens são iguais, mas há alguns que são mais iguais que outros), frase que me surge na lembrança com outro filme notável, “Bolero”, (Les Uns et Les Autres) de Claude Lelouche, que passou despercebido em Aracaju, mas que restou inesquecível, inclusive pela música de Michel Legrand, o Bolero de Ravel, e o Folies Bergère coreografado por Maurice Béjart.
Mas, voltando à Grande Revolução, se muitos falam da cabeça do Rei, Luís XVI, decapitada na Praça, hoje da Concórdia, o que dizer de Jean-Paul Marat, o jornalista, “Amigo do Povo”, que mais a inspirou e dela foi poupado?
Marat, que fora um médico fracassado e sem clientes, um cientista frustrado que se creditava maior que Newton e Lavoisier, que se revelou jornalista incendiário, instigador da ira popular contra os legisladores, seus juízes e eventuais tribunais.
Marat que de acusado agitador saiu do tribunal do júri carregado pelo populacho como seu herói.
Marat, que “na galeria dos revolucionários ocupa o lugar do energúmeno”, no dizer de Mona Ouzof, homem feio e doente que reclamava cabeças, e assim foi erguido como amigo do povo, e que foi morto por uma bela mulher, doce, terna e ingênua, segundo traços dos artistas que a retrataram
Marat, “Calígula de Encruzilhada” para Chateaubriand, “funcionário da ruína”, para Victor Hugo, “rei dos Hunos”, para Luís Blanc, era para outros “única criatura que fazia compreender o ódio”.
Marat que até Robespierre, “entre virtude patriótica e loucura furiosa” o admirava e temia era “homem de sangue, morto no sangue, figura extraordinária de mártir carrasco”.
Marat que morto foi entronizado no Panteão da Pátria, e de lá foi retirado por igual motivação, ao sabor da maré revolucionária em idas e vindas perpétuas.
Marat que foi perpetuado pelo golpe de um virgem, que ficou traçada na História, não como uma virago, “amachiada”, nem como uma Antígona funesta, menos ainda como uma Medéia filicida, ou uma Judite, viúva-negra judia.
Marat que foi morto por uma virgem, Marie-Anne Charlotte Corday d’Armont, de forma premeditada, enquanto se banhava em eravas aquecidas que lhe acalmavam a pele eczematosa, com suas coceiras imperiosas a exigirem o degolo sem fim de centenas de cabeça, de milhares.
Diferente dele, Charlotte Corday era uma moça da cidade de Caen, na Normandia francesa, para onde haviam fugido os políticos do partido Girondino, postos fora-da-lei pelos radicais Montanheses, por inspiração dele, Marat.
Em Caen, Charlotte vira estes seus amigos serem aprisionados e depois decapitados em Paris.
É quando, por conta própria, e sem dizer nada a ninguém, resolve ir a Paris vinga-los. Chegando a Paris, localiza a residência de Marat, e munida de uma faca bem amolada (un couteau bien aiguisé), que previamente adquirira, consegue vencer a vigilância do jornalista, sendo por ele recebida no meio de seu banho medicinal, conseguindo enfiar-lhe no peito o “couteau” letalmente, no dia 13 de Julho de 1793.
Presa de imediato, Charlotte Corday não resistiu nem gritou.
Interrogada e processada, foi executada na guilhotina no dia 17 de Julho, quatro dias depois, virando musa e inspiração da Reação, em traje rubro que exibiu com orgulho, até o patíbulo.
O ato de Charlotte Corday aprofundou o terror revolucionário levando as cabeças de “raivosos” como Hebert, “indulgentes”, como Danton e Demoulins, chegando por final ao “incorruptível “ Robespierre, só para dizer que numa Revolução todos prestam ou não prestam, por complemento necessário.
Necessário dizer também, que Charlotte Corday ainda hoje, em tempos de pichação de estátua, continua sendo imutavelmente exibida em sua Caen natal, nas praias da Normandia, onde aconteceu o desembarque dos aliados recentemente comemorado.
Em tempos radicais, cada um com suas causas e seus heróis.