Francisco Saracura:
Ao reportar-lhe que conclui a leitura de seus livros, você me pergunta, naquele inconfundível tom brincalhão, se terei alguma lição a lhe passar. Não, é claro que não tenho. E como você bem sabe: os pacotes-feitos, que certos livros e cursinhos impingem aos interessados, com a promessa de torná-los escritores, não ajudam muito.
De modo semelhante, e num degrau mais alto da escala, alguns titulares, sacramentados no ramo, não se cansam de lembrar a nós, escritores provincianos, que a arte de narrar é soberana. E o é, de fato, na medida em que a narrativa aceita e abriga, na sua diversidade, a contribuição de todas as fontes do conhecimento. Mas não sem completar, como primeiro mandamento, que todo esse aporte terá um cunho apenas auxiliar, sujeito, portanto, ao império da própria ordem narrativa com o seu arsenal de recursos estilísticos, seus componentes retóricos, suas categorias internas. É neste ponto que ela exerce a sua soberania.
Em princípio – prosseguem os entendidos – os recursos disponíveis deverão ser manuseados numa gradação equilibrada e harmônica, de tal forma que ocultem as agruras e hesitações do narrador, as costuras da luta quase sempre inevitável, travada nos bastidores. E ainda recomendam que tais recursos, sendo parte intrínseca da narrativa, devem robustecer o seu sentido geral; que não exerçam apenas uma função intransitiva, que não se esgotem em si mesmas. Tomo como exemplo a descrição, categoria que vem sendo desprestigiada há mais de um século, (talvez por isso insisto nela, visto que é desenfastiante e desafiante nadar contra a corrente). Pois bem, se ela, a descrição, for usada para delinear uma paisagem, é saudável que atue também como índice metafórico de algum sentido, ou como reforço para que as passagens levem ao leitor maior ressonância.
De fato, narrativa não é reportagem. Necessita de vida, substância, solidez, que serão injetadas na medida do talento e da aplicação de cada um. Os mesmos entendidos também nos encarecem que o leque das coordenadas da narrativa deve se entroncar, com vistas a fortalecer essa convergência. As técnicas mais arrojadas, como o fluxo-de-consciência – apesar de secular – e quaisquer outras, não se justificam por si mesmas. Mas, sim, na medida em que contribuem para a persuasão e o convencimento, colaborem no concerto da organicidade geral.
Como você sabe, Francisco Saracura, essas noções básicas, e bom número de outras, são incompletas e difusas, encontram-se em qualquer manual literário, mas pouco facilitam o nosso entendimento! Imagine-se então a sua aplicabilidade! Não ajudam quase em nada.
O testemunho dos narradores sobre o dilema do início da escrita, o enfrentamento da página em branco, por sua vez, também não ajuda muito. Há deles que se vangloriam de estocar na memória, tim-tim por tim-tim, a história já pronta, em vias de ser passada para o papel. Antes de engatarem a primeira frase, planejam o enredo direitinho: estabelecem a divisão dos capítulos, ordenam a sequência dos episódios, estudam a psicologia das personagens. E ainda se dão ao luxo de bosquejar perfis em conformidade com a índole, e a função que esses seres de tinta e papel venham desempenhar. Fazem croquis do ambiente geográfico, mapas das estradas, guias dos labirintos, plantas de casas. E só então, apoiados nesse arsenal gráfico, onde, suponho, devem angariar alguma segurança, começam a narrar. Arre lá!
A solução divulgada por Guimarães Rosa também é, seguramente, seguida por outros escritores: … adotei naturalmente o processo de acumular material e afiar as ferramentas, à espera de momentos propícios e decisivos, quando a oportunidade passa por perto e a gente tem de segurá-la com mão firme, como um louco que se agarrasse no rabo de um cavalo a galope.
Outros, porém, talvez mesmo a maioria, se chegam a arrumar algumas ideias, a planear um esboço prévio – e acho que chegam – poderão se afastar, mais adiante, da linha mestra da proposta inicial, geralmente arrebatados por uma imposição interior que germina e se engendra pouco a pouco, espontaneamente, sintonizada com a natureza e o humor do próprio escriba. Neste ramo, não é tão fácil nem comum seguir um plano inalterável. É natural que o narrador intercale e incorpore novos tópicos e efeitos estilísticos que o compensem, e dos quais somente durante o andamento da escrita, vai recebendo os seus estímulos.
Sabe-se que os projetos são melhor cumpridos quando não contrariam o humor e a índole de seu executor. Caso contrário, a coisa ganha um ar de farsa. E uma hora a máscara cairá. A escrita é um processo íntimo, vivo, dinâmico. No seu percurso, alternativas novas vão de impondo. Geralmente germinam e se engendram, repito, a partir de uma faísca qualquer que não controlamos.
Esse amoldamento do narrador ao texto que está em curso, pode se valer, inclusive, de recursos do imaginário. O mais comum, no entanto, Francisco Saracura, como você bem sabe e por onde incursiona habilmente, é o narrador se voltar para o ambiente externo – no seu caso, também nativo – onde se insere, observa, participa de várias experiências e, afinal, se põe a decantar a caixa de ressonâncias que fora gravada no chão da infância. Aí, as marcas do “convívio” com as pessoas, os bichos, as coisas de casa são, com toda certeza, mais indeléveis. Mesmo que não compareçam de forma ostensiva, ao primeiro nível da escrita, subjazem nas entrelinhas, disfarçadas, mas presentes. E, bem enraizadas, saberão o que fazer… Lembro a lição de nosso Manoel Bandeira: Quando comparo esses quatro anos (6-10) de minha infância, a quaisquer outros quatro de minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela quadra distante. Ou a de Faulkner, mais longe de nós: Aprendi que, para se ser escritor, é necessário ser-se o mesmo de quando nascemos (…) É necessário lembrarmo-nos do que fomos.
Na zona rural do Riachão, há décadas e décadas, cresci pegando de ouvido a palavra arremediado, para designar aqueles que tinham modestas posses, um pedaço de terra onde lavouravam, mais um gadinho com a ajuda do beiço das estradas. Ainda ouço-lhes a autoestima reverberando, pelo fato de se regerem por conta própria. Não tinham patrão, não moravam em terra alheia. Socavam a mão no peito. Falavam em liberdade. Era bonito. Na década de 50 isso ali valia muito. Vejo, agora, que a palavra em itálico, tão evocativa da minha infância, não é abonada pelos dicionários. O Aurélio a registra, mas não sem comer-lhe a primeira sílaba. De qualquer forma serve ao nosso propósito, visto que nos remete ao mesmo sentido.
Bem, em sua semântica, a palavra arremediado é hoje meio vaga. Alcança um sem-número de profissões, de empregados e, conforme seja, seu emprego convém ser ajustado. Pelo dito, (me corrija se não for) me deixe dizer que você, Francisco Saracura, provém de uma família arremediada, sediada em terra própria, de onde retirava o sustento, evangelicamente, com o suor do próprio rosto. Sem nenhuma força de expressão. A família inteira, dia a dia, sol a sol, infatigável no serviço duro, pesado, cruel, estafante. Não encontro sinônimo para qualificar o trabalho com enxada, enxadeca, picareta, chibanca, foice, estrovenga e outras ferramentas rudimentares empregadas na lavoura.
Você mesmo sugere, Francisco Saracura, que só se submetia à enxada quem não tinha outra saída. Cultivava-se mandioca, aipim, inhame e outros “legumes”, em conformidade com a tradição que elevaria o nome de Itabaiana Grande a celeiro de nossa gente. A mais, vocês Saracuras, dinâmicos empreendedores, não dormiam no ponto. Eram farinhadas, negócios miúdos, uma grade de vender farinha no mercado central, um punhado de rezes para acudir nas urgências imprevisíveis. Família grande, pouca instrução, luxo nenhum. Sem escola por perto, sem posto de saúde. E, sobretudo, convém frisar, sem perspectiva para moços e rapazes se encaminharem na vida – a não ser o cabo da enxada. Condições adversas para um futuro de escritor.
Imagino que essa é a moldura onde se encaixa a sua infância, o menino que, nas Flechas, chegou a puxar cobra para os pés, como se dizia, em Riachão, de quem trabalhava na enxada. É o ambiente onde começou a ser forjada sua personalidade, gestada sua futura obra, a despeito e sem querer minimizar as suas conquistas posteriores, mercê de encrespado enfrentamento de venha o que vier. Obra que, a esta altura, e no que concerne à duração – decerto já está dando quinau nos ferros batidos na tenda de todos os ferreiros da família. Suas conquistas posteriores, como dizia meu pai quanto se referia a um esforço descomunal, foram uma luta romana. Anos de seminário, licenciatura plena, emprego na imprensa, na Petrobrás, a experiência apanhada em Brasília e em São Paulo, e tantas qualificações a mais, – a par de desconforto, de privações, de sacrifícios, – lhe facultaram, com justiça, a mobilidade social suficiente que o fez chegar a escritor, onde apuraria seus dotes pessoais.
Toda essa arenga, esse chove-não-me-molha é para ressaltar o que você já sabe e tem feito. Que a sua pujança de locomotiva jamais saia dos trilhos. E que, de quando em quando, vá engatando mais um vagão na esteira dos que já andam circulando, para reforçar a mensagem que nos tem passado.
Volto a encarecer a infância. É um território inesgotável. “Minha pátria é a infância”, disse Baudelaire. E quando o narrador está forrado com a adesão do menino que há dentro dele, do menino de olho vivo, partícipe da vida da família, do sítio, do povoado – a expectativa é boa.
Se o menino esteve sob o jugo daquela humilde condição social até engrossar o pescoço; se, ao tomar as rédeas da própria caminhada, persevera nos atributos do seu ser de classe; se, ao se tornar escritor, continua estritamente fiel a seu passado, orgulhoso de sua gente; se, além de administrar bem a palavra, não abandona a sua origem – a expectativa passa a muito boa.
Isso não é pouco, Francisco Saracura. Mas talvez não baste pra qualificar um escritor. Esta palavra pesa muito. Vamos adiante. Sua obra mostra e comenta com perspicácia, sob o olho inquieto do menino, os segredos, os costumes, a lida da família de lavradores, o marasmo na vidinha sem perspectivas do povoado e suas adjacências. O narrador sonha em largar o cabo da enxada, em aprimorar a instrução em busca de um destino mais sofrível. A par deste sonho enraizado, vai registrando farto material, delineando matizes do ambiente físico e social, salienta a rotina das relações familiares nos bons e maus momentos. Nada é poupado. Vai muito além das biografias encamisadas no pudor. Essa matéria toda, esse inventário de costumes constitui um manancial de informações, muito mais rico do que relatórios de associações, de sindicatos, e de quaisquer registros feitos, porventura, sob iniciativa dos poderes constituídos. Ao dissecar esse ambiente, Francisco Saracura, você não reconstrói apenas a sua meninice. Está sendo o porta-voz de todos os meninos de sua igualha. Os meninos da Terra Vermelha, de toda a zona rural de Itabaiana, de Sergipe, do Nordeste inteiro. Daqueles desafortunados, muitos dos quais jamais saberão que você existe.
E não venham me dizer que o escritor deve ser pinçado entre os intelectuais progressistas, como recomendara certo filósofo, e que só deve ser abonado de assentar sua bateria naquilo que ele designa como discurso crítico. Caso contrário, onde se encaixaria um Guimarães Rosa com as suas novelas lúdicas? Que não me venham com conversa. Os seus livros, Francisco Saracura, estão aí e suponho que podem servir de fonte para auxiliar os estudos de Sociologia e de Antropologia Social. Estão aí para tocar a nossa sensibilidade, para puxar as orelhas de nossas lamúrias, para consolo de nossas perdas, para lembrar-nos dos semelhantes, para reparar as injustiças. E, também para expor as carências e o excesso de rigor que atravancaram a sua vida de menino, e que podiam barrar a sua caminhada. E que são relatados – eis mais um dado importante para o escopo do escritor – sem autopiedade, sem mágoas bestas, sem ressentimento, sem apelo a proselitismos, sem chororô. Isso conta ponto. A boa literatura não acolhe proselitismos. Aqui, a expectativa passa a excelente.
Hemingway nos assegura que a coisa mais difícil do mundo é escrever uma prosa direta e honesta sobre os seres humanos. Primeiro, tem se conhecer bem o assunto; depois, tem de se saber escrever. E mais, os livros devem ser sobre gente que conhecemos, que amamos e odiamos, não sobre assunto a cujo respeito vagamente estudamos alguma coisa. Nesta mesma linha, Graciliano disse: só me abalanço a expor a coisa observada e sentida. E repreende Lins do Rego: Estranhei Zé Lins afastar-se da bagaceira e do canavial, tratados com segurança e vigor em obras anteriores, discorrer agora sobre Fernando de Noronha, onde nunca esteve. E ainda completa. Pessoa de tanta experiência, de tanto exame, largar fatos observados, aventurar-se a narrar coisas de uma prisão distante. (…) Zanguei-me com o Zé Lins. Por que se havia lançado àquilo? O começo do livro de Zé Lins torturava-me. Quase desejei ver o meu amigo preso. Manoel Bandeira também tira o seu sarro, ao dizer que Zé Lins só queima bem a bagaço de cana.
Bem, recapitulo Hemingway: conhecer bem o assunto, e saber escrever são os dois pré-requisitos inquestionáveis para se ser escritor. Já vimos que você, Francisco Saracura, tem domínio sobre o assunto que expõe. Quanto à outra parte, saber escrever, você sabe muito bem, tanto quanto eu, que não há uma receita ou fórmula mágica para tal. Trata-se de uma prática muito pessoal. Quero evitar falar em dom, mesmo porque, se suponho bem, o escritor não depende somente disso. A explicação mais plausível e robusta que encontrei, e que serve a todos nós, indiscriminadamente, é a de Onetti: “Há um só caminho. E que houve sempre. Que o criador de verdade tenha a força de viver solitário, e olhe dentro de si. Que compreendam que não temos pegadas a seguir, que o caminho haverá de fazê-lo cada um, tenaz e alegremente, cortando a sombra dos montes e os arbustos anões.” Como Onetti era agnóstico, não serve àquele monte de candidatos que acreditam em milagres…
Pois bem, acho que você já percorreu o caminho que Onetti recomenda. Já se ajuda com aquele peso a que me referi. Já encontrou o seu lugar que, no entanto, como ocorre com outros autores, sempre pode ser aperfeiçoado. É evidente que não leio tudo o que circula entre nós. Mas, do pouco que conheço aqui, não me lembro de ter encontrado um escritor que, vindo de uma infância tão desfavorecida de conforto e de oportunidade, um dia tenha exposto o seu ambiente de formação com tanta fidelidade ao menino que um dia foi. O determinante aqui não é a estado de pobreza. Você sabe que há escritores que vieram de uma condição mais humilde do que a sua. Mas nem esses, nem os mais afortunados, conseguiram traçar com tal propriedade, o perfil de uma família rural como era a sua, no seu tempo de menino. Essas pegadas reaparecem constantemente, mesmo quando você situa suas histórias em outro ambiente. Em Meninos que não queriam ser padres, leio os episódios transcorridos aqui em Aracaju, inclusive a cena do afogamento na Atalaia, como se escutasse o menino das Flechas. É uma “dicção” inconfundível.
Só encontro paralelo em Carmo Bernardes que, como você sabe, procede de uma família rural pobre, desassistida, carente, bem mais humilde do que a sua, sob todos os aspectos sociais. Alfabetizou-se, tornou-se membro da Academia de Letras de Goiás, e escreveu 17 livros. É outro que nunca abjurou o seu nível social, que nos deixou uma herança cultural inestimável, que tinha um estilo inimitável.
Guerra da Cal tem uma definição de estilo que serve ao que digo, porque destaca a substância interior, onde se desenrola o ato da criação. O estilo literário vai muito além do meramente verbal. Ter um estilo não é possuir uma técnica de linguagem, mas principalmente ter uma visão própria do mundo e haver encontrado uma forma adequada para expressar nossa paisagem interior.
Trago essa citação como respaldo ao que vou dizer, visto que nesta matéria sou um simples diletante. Quem fala aqui ainda é, na verdade, o adolescente que foi passando a selecionar as leituras ainda em Riachão. Fixei em negrito a palavra adequada porque ela define bem a acomodação de sua linguagem ao assunto. Entre os escritores, aqueles que o leitor pode, honestamente, identificar apenas pelo estilo inconfundível, pela maneira pessoal de escrever – havemos de convir que são poucos.
Você é um deles, Francisco Saracura. Sua escrita é fluente, espontânea, agradável. Tem selo próprio. Pode registrar sua patente. Depois de tudo o que disse, se você me permite, faço-lhe as últimas considerações. Não se trata de detalhes. Não costumo cuidar disso.
Talvez haja, nos seus livros em geral, uma certa hesitação. A partir – em alguns, pelo menos – da ficha catalográfica. São romances e ao mesmo tempo memórias. Não acha que um dos gêneros devia prevalecer? Bem, mas isso é apenas um indício, você poderá contra argumentar. Mas o que chamo de hesitação, também se reflete e se abriga nos textos. E como, em termos estruturais, o romance é mais exigente do que o gênero memórias, que é bem mais flexível, quando o leitor leva isso em conta, percebe uma leve contaminação, um certo trânsito que termina incomodando. Talvez você também pudesse arrefecer certas repetições, distribuir a matéria mais colada à mensagem que queira passar ao leitor.
Enfim, rearrumar. Levar sempre em conta que o narrador não pode se desmandar pra lá e pra cá. Algumas dispersões estranhas ao eixo da narrativa, em qualquer autor, sempre podem ser podadas. De qualquer forma, suponho assim que a sua obra circulará ainda com mais conforto no âmbito da literatura.
Por fim, como você também sabe, essas impressões devem ser relativizadas. Qualquer leitura termina privilegiando o ângulo pessoal. Os mestres consagrados – aliás, todos mortos – também não foram perfeitos. Mas são a fonte mais confiável. Os únicos que nos servem de lição.
Francisco J. C. Dantas