Laís Alves da Silva Cruz
Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe
Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS)
E-mail: lais.ac@outlook.com.br
Recentemente, a Netflix lançou uma série que une a animação a um podcast com temas sobre filosofia, meditação, autoconhecimento, perdão, morte, com especialistas ou não no assunto. “The Midnight Gospel” exibe a vida do peculiar Clancy Gilroy, que usa o seu simulador de multiverso (detalhe: o personagem pode assumir um avatar diferente a cada episódio, tornando-o único) para fazer viagens psicodélicas em outros mundos e entrevistar os seres que lá habitam para o seu “spacecast” (podcast) transmitido no universo.
A ideia da criação partiu de Pendleton Ward (também criador da série “Hora da Aventura”), que há alguns anos havia escutado o podcast “Duncan Trussel Family Hour” (2012), do ator e comediante Duncan Trussel. Ward gostou das temáticas sobre a vida e as questões que circundam a religião e a espiritualidade em um tom humorístico, sério e leve ao mesmo tempo. Trussel, que também é o dublador de Clancy, entrevistou psicólogos, músicos, médicos, professoras, apresentadores de tv, agente funerária, entre outros, para o seu programa. Alguns dos áudios originais das entrevistas foram utilizados para criar os episódios, sendo necessário gravar apenas alguns trechos à parte para dar conexão ao enredo.
Algumas personalidades, como o professor espiritual Ram Dass, a escritora Anne Lamott e o médico Dr. Drew Pinsky, dão vozes aos personagens que vivem nos mundos apocalípticos escolhidos por Clancy e que conversam calmamente enquanto se aventuram. Os cenários por onde o entrevistador passa são criados nos mínimos detalhes. Com cores e seres atípicos, o diretor de arte Jesse Moynihan buscou dar originalidade e quebrar as expectativas de uma animação baseada no senso comum. Montanhas que flutuam e fazem curvas, chamas coloridas que têm algum efeito sobre quem chega perto, cores vibrantes e personagens que poderiam ser assustadores; mas a sua estética e o próprio diálogo os tornam amigáveis e compõem o surrealismo da trama.
O título não foi traduzido para o português, mas em uma tradução livre seria “O Evangelho da Meia-Noite”. A escolha da palavra não foi em vão, pois em uma entrevista para a revista estadunidense “Animation Magazine”, Ward relata que espera transmitir a mensagem da boa notícia que, mesmo em uma situação catastrófica, é possível crescer como pessoa, com o coração aberto. Em cada episódio, os personagens vivenciam os apocalipses dos seus planetas e mesmo assim se permitem conversar com o seu visitante.
A série tem classificação indicativa para maiores de 18 anos e é considerada como desenho adulto, não só por sua mensagem, mas principalmente devido às cenas de violência, palavrões e morte. [Alerta spoiler!] Logo em sua primeira viagem, Clancy parte para a Terra 4-169, que está vivendo um apocalipse zumbi. O escolhido é o presidente dos EUA, que o recebe gentilmente enquanto mata os invasores na Casa Branca. Na vida real, o convidado foi o Dr. Drew, médico especialista em tratamento contra drogas. Além da série de eventualidades que ocorrem, eles conversam sobre o uso de drogas e suas consequências. O telespectador pode sentir certo desconforto ao assistir, dada a quantidade de acontecimentos e a profundidade dos assuntos abordados.
Podemos perceber que através da arte, sejam filmes, música ou o teatro, a compreensão dos seres humanos sobre a vida se torna um pouco mais lúdica e faz com que exista a possibilidade de ressignificar alguns aspectos pessoais. No tempo presente, em que precisamos nos recolher e lidar principalmente com questões internas e familiares, produções como essa podem despertar uma sensibilidade a mais para o autocuidado e resiliência.