Os primeiros dois capítulos são aterrorizantes. Quis entrar na briga. Cheguei a maldar da integridade do gênero e da sanidade de princípios (que até o final do livro mantive sob suspeita) de Jileu Bicalho Babão, diretor da Faculdade de Mitologia. Tipo singular e caracterizado de maneira cirúrgica e impiedosa (merecia mais) pelo narrador, que o segura assim até o último capítulo. E lá, ainda o premia com nababesca aposentadoria de vereador, com cadeiras em academias literárias, e a honra de ser o prefaciador oficial de qualquer um que resolva publicar livro. Bicalho é estereótipo natural de quem tem poder. Quantas vezes na vida eu não o encontrei? Quantas vezes eu não o fui? Justino Vieira treme e se diminui a ponto de, no seu recôndito, machucar células sadias que se revelarão, anos depois, em agressivo e impiedoso caranguejo.
Tio padre Barbarino usa a força da fé, urge apaziguar a tensão. “Sem humildade cristã, sem renegar a soberba…você é um homem sem futuro”.
Presto continência ao soldado Divino Melenguê (que azar da porra encontrar aquele pedófilo safado, cabo Elesbão, que o queria papar a qualquer custo). Divino merecia um romance para ele só (já disse antes), pelo brilho aqui e em Cabo Josino Viloso. E ainda acho pouco para esse irlandês sarará do Raso da Catarina (Romã de Riba), campeão no Jogo das cabeçadas, que nem o vi treinando. Não foi criado para ser coadjuvante.
Leopolda, a cunhada desejada a vida toda, que lisa escapulia, chega para morar e tomar conta de tudo: “você está morrendo, sim, mas uma metade de medo e a outra de desleixo.” Com a esposa falecida e os filhos ausentes, de que um pecador precisa mais? E ganha, “sem ter que mover uma palha, tudo por obra e graça do destino”, uma maravilhosa aleluia: “Ela move os braços para o alto arranca do pescoço sua camisola que avoa tal qual pluma alvejada das asas brancas de uma garça rufando e rompendo as sombras.”
A professora Camerinda recebia o pagamento mensal com a assinatura a rogo de alguém (que boa professora o Alvide tinha!), entretanto, cheia de outras sapiências: “Esse sobrinho seu, seu Melenguê, é um tapado. Mais valia ter um caco de torrar mamona” (no lugar do coco). Dona Zinha falou assim de mim (“Os Tabaréus do Sítio Saracura”), mas, no meu caso, ela estava coberta de razão.
Serafim Leitão, professor da Mitologia, aparece como um ponto de ciúme, e que serve para revelar podres das universidades e das periferias agregadas. E como há?
E surge o médico Ricardo Ferrão, que ferra fazendo graça. Nasceu para sacanear a clientela. “É câncer mesmo, apenas uma cabecinha de alfinete… sortudo!” Precisava chegar mais perto da dor e deixar deboches. Médico amigo às vezes prejudica o doente.
Então chega Agripina, na maior naturalidade, para tomar conta no lugar de Leopolda que se vai como veio. Quem mandou Justino pisar na bola pegando nos peitos da enfermeira? E não lhe sobra mais nada a não ser apreciar as formas redondas de Agripina, que foge de seus agrados.
O cabo Josino Viloso, o exator Zeca Papão e outros do Alvide passam de passagem … Alguns até deram com a mão, acho que foi para mim, então podem ter me reconhecido e, por isso, sorri agradecido.
O povoado Alvide, que povoa a mente doente de Justino, é o símbolo do nada. Mas guarda aquele sonho restante ao qual, desesperado, se agarra para não tombar junto na cova onde jazem todos que teve na vida. “Ocupado dia e noite em cavar a terra, é bem possível, que essa zoadeira toda que me chega das ruas e dos homens (Corona Virus, Moro, Mandela, fakesnews, assombrações…) me fosse indiferente no Alvide.”
E os nobres doutores da universidade que se afinaram? Quem manda passar a vida caçando ideias estapafúrdias pelo prazer de exibirem, nas reuniões aparatosas, teorias de fabuloso preparo entretanto inúteis.
E vem mais espirros, como uma defesa na derrota iminente… Parecem o sopro de Deus para ajudar o mais fraco. Mesmo assim, após cada espirro de Justino, eu ajeitei minha máscara de cabra medroso nessa quadra da peste rondando.
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Sem especificar dias, “Sob o peso das Sombras” é o diário de Justino Vieira, intelectual recatado (leu todos os livros do mundo), composto com capricho, subindo e descendo, na alegria até na dor, acelerado e paciente, atrapalhado e consciente, enquanto o câncer avança inexorável sobre si. É catarse purificadora e prestação de contas. Talvez a vingança possível pelos azares a que foi exposto no vale de lágrimas.
367 páginas sem concessões. Com acurada visão e com apurado senso crítico. Diz o que tem a dizer, doa a quem doer e, quase sempre, mais ao próprio narrador. Tridente ferinos contra a hipocrisia, pétalas macias para dona Leopolda (que pena ser uma mulher cismada), parcimonioso louvor à pessoas dignas, que sempre há… Testamento cabal.
Cabe fortuna para quem tiver a chance de o ler. Seja de carapuças ou de sabedorias.
SOB O PESO DAS SOMBRAS, Francisco J.C. Dantas, Planeta, 2004, 367 páginas, isbn 9788576650126. Aracaju, 6 de abril de 2020, Antônio FJ Saracura. Extraído do blog: Antônio Saracura Sobre Livros Lidos).
(*) Escritor das Academias Itabaianense e Sergipana de Letras.