O mercado da gratiluz

Na última década as técnicas e os rituais de cura têm ganhando versões de todos os tipos. A busca por métodos não ocidentais, manipulação de ervas, meditação, cura xamânica, pajelança, benzedeiras, rezadeiras, jurema, santo daime, e a curiosidade acerca dos rituais sagrados indígenas e afro-brasileiros aumentaram radicalmente. Mas afinal, o que a busca por terapias holísticas tem demais? Cada vez mais a exposição dos charlatanismos tem vindo à tona, e junto com ela, os inúmeros casos de fragilidade e vulnerabilidade emocional de diversas pessoas que procuram essas alternativas não somente como curiosidade, mas como método de cura, sobretudo da saúde mental.

Quando Marx disse que a religião é o ópio do povo, trazendo para a nossa realidade, eu interpreto como um vício que cresce e consome até virar um estado de cegueira que beira ao fanatismo. Eu sou uma mulher religiosa, sou uma mulher de axé, mas tenho também vulnerabilidades e fragilidades como qualquer ser humano, e é por isso que, quando passamos por esses processos de abalos emocionais, é necessário ter cuidado com o leque de bondade e tratamentos de cura ofertados por tantos dogmas, religiões, rituais, jornadas e tratamentos. Nem todas as pessoas que estão à frente do mercado da cura e da busca pela evolução e crescimento espiritual pensam esses tratamentos de maneira mercadológica, obviamente, mas há que se ter o cuidado para não confundir o discurso bonito do “dinheiro gera prosperidade, e é uma troca, quanto mais trocamos prosperidade, mais geramos prosperidade”, com o enriquecimento de muitos através dos processos dolorosos dos outros.

E digo isso, porque às vezes tenho a impressão de que 1500 não saiu de nós, e os tutores dessas terapias que buscam nos xamãs, nas ervas, na natureza e na sabedoria ancestral, tratam dessas sabedorias como um escambo. Mas, é necessário lembrar que em 1500, os indígenas foram escravizados, dizimados, e essa conversinha mole de trocar ouro por espelho é só para amenizar o grande genocídio que aqui existiu. Tratar os povos originários como se estivesse fazendo um favor ao “dar visibilidade” e “compartilhar o saber ancestral” é o mais do mesmo do colonialismo. É uma ajuda simbólica e uma troca desigual, ou seja, não há troca. Quando alguém fala que a moeda é necessária para gerar o fluxo da prosperidade, mas essa moeda só chega para quem encabeça e gerencia os diversos eventos do sagrado, e o retorno é pouco ou nada para os povos que estão em situação de extrema vulnerabilidade social desde sempre, e só são lembrados para tal, penso exatamente naquela historinha que aprendemos na escola, o português dá um espelho, um tecido, e em troca leva as riquezas da terra. Em que momento essa troca é leal e gera prosperidade, e para quem?

De forma semelhante acontece na Umbanda e no Candomblé, por exemplo. Pesquisadores, estrangeiros, muita gente fica encantada com os rituais, os ritmos, as cores, a dinâmica, o movimento e o transe. E aí vira um arerê só, é tanta foto, tanta entrevista, tanta produção de artigo, prêmios acadêmicos, prêmios jornalísticos, exposições em Paris, venda dos livros, das fotos, mas e a troca? Tem gente que some, tem gente que deixa lá uma foto e um muito obrigado, mas não tem a coragem de promover ações que façam a “prosperidade monetária” circular nas casas. Por isso, o discurso de gratidão e luz é lindo, cada foto linda nas redes, os textos em agradecimento e contemplação então. Mas fazer um esforço e tornar-se aliado das causas são poucos. É muito mais cômodo fazer circular a prosperidade através de cursos e atendimentos que beneficiam a alma de quem paga, e enche de bens materiais quem promove.

Nisso tudo, onde ficam os detentores de todos esses saberes? Recebendo alimentos não perecíveis e refeições para compartilhar do seu saber? Há mesmo uma troca? É justa? Minha avó, mulher sábia, indígena de Canhoba, já me dizia: “desconfie de quem é bom demais e fala manso demais, gente assim mata sorrindo e ainda reza no velório”. Dito isso, deixo meu recado, se engajem nas lutas que vocês acreditam, mas sejam justos, não explorem o saber alheio para lucros exorbitantes com o sagrado e com a fé alheia, porque Orixá não dorme, e da mesma forma que Exu abre caminhos, ele também fecha. Omolu traz a cura, mas também é o senhor das chagas, e Xangô, ah meu pai Xangô, esse é implacável em sua justiça, e a conta quando chega, vem a um preço impagável, não tem prosperidade xamânica que dê jeito. Namastê!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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