Simone Evelin F. De S. Luna
Mestranda em História das Ciências e da Saúde
(PPGHCS-COC-FIOCRUZ)
Bolsista CAPES
Em 1899, chegava ao Brasil, pela primeira vez, a peste bubônica. Doença responsável pelas mais temidas e funestas imagens e incrustada na memória coletiva de gerações. Santos e Rio de Janeiro foram as duas cidades que recepcionaram a moléstia em território brasileiro e, por conta de sua presença, criaram-se os institutos soroterápicos para a produção de soro antipestoso (hoje, o Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz). A peste viria a atingir outras regiões do país, como a Sul e a Nordeste, e, a partir da década de 1910, se interiorizaria seguindo o caminho das estradas de ferro; importantes vias de comunicação comercial e de circulação de passageiros. A região Nordeste, no decorrer dos anos, se tornou a área mais afetada, contando com casos frequentes da doença, que aí se tornara endêmica, isto é, de causa e atuação localizadas e que se manteve latente e periódica (e onde permanece até hoje).
Até meados da década de 1930, os governos estaduais eram os responsáveis pelo controle da moléstia. No entanto, as dificuldades financeiras e os serviços de saúde incipientes (ou inexistentes) impediam que se tratasse do problema de forma eficaz. O descompasso entre as atuações dos governos estaduais nesse quesito fez com que os médicos sanitaristas defendessem a atuação direta do governo federal para que o combate à doença se tornasse mais uniforme e com diretrizes centralizadas. A interdependência sanitária entre os estados da federação (ou a noção de que a profilaxia de um estado não teria resultado se o seu vizinho também não a implementasse) e a falta de convergência nas suas ações mostrava que era mais que necessária a atuação do governo federal como o ente normatizador e regulador que interviria de modo a resolver o problema de fato.
Essas discussões sobre a nacionalização dos cuidados com a peste resultaram, em 1941, na criação do Serviço Nacional de Peste, órgão federal que concentrou e regulou o combate à doença e que atuou de forma mais ativa no Nordeste brasileiro (onde se concentravam os casos humanos), superando os obstáculos configurados pelas jurisdições dos estados e suas competências. Isso foi possível porque tal processo convergiu com as intenções políticas centralizadoras do primeiro governo Vargas (1930-1945).
Atualmente, na situação de pandemia encarada a nível global, vemos as queixas dos governos estaduais em relação à falta de organização, por parte do governo federal, de ações uniformes que sejam reguladas e normatizadas pela União. A negligência do Planalto é proposital e coloca em evidência como as questões políticas sempre interferem nas decisões de cunho sanitário. E, no caso recente, a política do governo promove o genocídio da população através de práticas aparentemente não intencionais, mas que denotam o pouco caso que o governo tem com a vida da população do país. A demora na compra das vacinas, o imbróglio da liberação das doses e a desinformação sistemática por parte do governo federal, seja não liberando dados (que somente sabemos através do consórcio da imprensa!), seja com afrontas diretas do antipresidente que passeia sem máscara livremente pelo país, seja a insistência em recomendar tratamentos sabidamente ineficazes, demonstram essa escolha política no manejo da pandemia no Brasil. O negacionismo e a maldade do governo federal mostram que não haverá uma confluência ou organização do combate à covid-19. Pelo menos, não através da União (Desunião?).
Não é novidade, para o estudioso da História, que epidemias e surtos ocasionam situações de negação e de enfrentamento às suas evidências. Entretanto, é o que se organiza após o seu reconhecimento que definirá as consequências de toda ordem (econômica, social e cultural). Estamos vivenciando a falência do sistema de saúde e a morte de mais de um brasileiro por minuto derivadas das políticas autoritárias e negligentes do governo federal que, em um passado não tão longínquo, cumpria seu papel de gerenciador de crises sanitárias nacionais.