NADA ACONTECE POR ACASO

No final da década de setenta, eu era dublê de vendedor lojistas, motorista de taxi, estudante de filosofia e pai de família. Trabalhava numa loja chamada Friolar, do Grupo J.Macedo em Fortaleza – Ceará.

Aos sábados o nosso expediente encerrava ao meio dia, no entanto, por volta das onze horas era iniciava-se a contagem regressiva para a folga de fim de semana, por tal razão, a maioria dos vendedores não gostava de atender clientes retardatários, aqueles que só  chegavam naquele estabelecimento, após aquele horário. É que uma venda, para ser concretizada, naquele tempo, demandava mais ou menos uma hora, se à vista, ou duas ou mais, se no crediário, isso sem contar com a entrega, pois se fosse para receber na hora, demandaria mais tempo ainda.

Esta demora decorria da quantidade de operações manuais que eram implementadas para a realização de uma simples venda que, hoje, graças a Deus, não existem mais: primeiro a escolha, como sabemos, naqueles tempos os clientes eram auxiliados nas escolhas, os vendedores realmente vendiam, pois assessoravam os clientes na hora para que levassem para as suas casas os melhores e os mais convenientes produtos, sobretudo, porque havia as buscas da satisfação do comprador e os limites de crédito a que  o comércio submetia a quem quisesse adquirir bens de consumo e, neste caso, cabia ao vendedor fazer a compatibilização, sugerindo ao cliente o produto “X”, demonstrando convicção de que tal produto era o que melhor, se encaixava na sua necessidade e no seu perfil; depois da escolha o mesmo vendedor preenchia um documento, chamado pedido e uma ficha cadastral com todas as informações pessoais do comprador e do fiador, se fosse o caso.

Depois de pronta, toda essa documentação seguia para outro setor, chamado cadastro, para que ali fossem analisadas todas aquelas informações. Consultado, por telefone, SPC – Serviço de Proteção ao Crédito e, aprovado ou negado o crédito aquele cliente.

Crédito aprovado, outras operações entravam em cena. Era necessário extrair, manualmente, uma nota fiscal noutro setor chamado faturamento. Com a nota fiscal na mão, seguia o vendedor para testar o aparelho, se eletro-eletrônico e, fazer a entrega, isso no caso do próprio cliente levar o bem. Caso fosse para a empresa entregar, esta nota fiscal seria simplesmente encaminhada para a expedição para que o pessoal do depósito se encarregasse de fazer chegar à casa do comprador aquilo que ele adquiriu.

Por existir a possibilidade destas demoras, aliado também à fome, – pois normalmente, meio-dia é a hora em que todos sentam à mesa para segunda refeição – a maioria dos vendedores evitava ao máximo, atender aos clientes que entrassem na loja a partir daquela hora.

Eu fazia parte dos que não se incomodava e, mesmo contra a vontade do meu gerente que reclamava bastante quando por minha causa passava do horário, gostava de atender independente da hora, se desse, mesmo que a loja já estivesse fechando, se o gerente e o pessoal do apoio: cadastro, faturamento e caixa aceitassem, eu atenderia.

Pois bem. Num determinado sábado, por volta de onze horas e vinte minutos, chegou à loja uma senhora querendo comprar, à vista, uma televisão de 12 polegadas que pudesse ser alimentada por bateria, pois onde ela morava, um lugarejo do distrito de Maranguape, chamado Itapebussu, não havia rede de eletricidade. Além disso, ela explicou que tinha pressa, pois o carro de aluguel em que viera retornaria exatamente ao meio dia. Garanti-lhe que daria para no horário do seu transporte, desde que apressássemos as operações. Dei tal garantia, porque já estava ciente de que havia no estoque da loja três aparelhos daqueles embalados, nas caixas. Então, acreditei que pelo menos um estivesse funcionando na hora do teste. Errei. Nenhum daqueles televisores funcionou. Aliás, isso era comum acontecer. A maioria dos aparelhos elétricos daquele tempo, mesmo zero, como se diz, não funcionava, por ocasião dos testes que, obrigatoriamente deveriam ser feitos antes de entregar.

Como todos estavam defeituosos, eu tive que me deslocar, no pé dois, até o depósito, testar outros aparelhos até que um funcionasse e, aí, conduzi-lo até a loja onde, já muito aborrecida, estava a minha cliente.

Isso demandou muito tempo e por mais que me esforçasse somente lá para mais ou menos doze horas e trinta ou doze e quarenta minutos é que consegui concretizar a entrega daquele televisor a uma mulher zangada, que, me xingando, dizia que não interessava mais aquela televisão, queria, na verdade, era seu dinheiro de volta, pois, devido à demora, havia perdido o transporte e  eu era o culpado e, entre outros impropérios impronunciáveis, descarregou todo o seu fel sobre um cara que também estava louco para finalizar aquilo e, também, ir para a sua casa…

Tentei argumentar, dizendo que foi o acaso, eu não poderia acreditar que os três televisores do estoque da loja estivessem defeituosos… Mas, não houve jeito; além dela, o gerente, que também ainda não tinha saído, por minha culpa, começou a criar problemas, dizendo que eu já era reincidente naquele tipo de problema e que não iria mais tolerar aquilo, me advertindo, inclusive, que aquela seria a última vez…

Ela, então, lançou a exigência final para a solução do problema: aceitaria a compra se eu pagasse a sua passagem de volta a Itapebussu e conduzisse o televisor até o ponto do ônibus, que ficava na Praça da Estação. Eu, neste caso não tinha saída. Aceitei. – Lá se foi a minha comissão – mas, fazer o que? De certa forma, me considerava o grande culpado.

Mesmo com toda a minha boa vontade em resolver o impasse, durante o trajeto tentei puxar conversa, mas, ela ainda muito enfurecida, sequer dava atenção. Na hora da despedida, quando tentei agradecê-la e apertar a sua mão ela também não aceitou virou a cara e disse: não dirija mais a palavra a mim seu… Despachei sua televisão, comprei seu bilhete, entreguei-lhe e fui embora.

No sábado seguinte, já nem lembrava mais daquela situação, de repente avisto aquela mulher entrando na loja… Meu Deus, é reclamação, vai ver que a televisão deu defeito e ela está aqui para resolver…

Dirigindo-se aquela mulher direto e determinada na minha direção, deixou-me mais preocupado ainda: pronto! Problemas! Imaginei, é agora que vou apanhar. Porém, ao se aproximar abriu os braços e mesmo que eu, assustado, tentasse me esquivar, ela me envolveu num caloroso e terno abraço, e, chorando, balbuciou algo que não entendi. Agradeceu-me, afastou-se um pouco, fitou-me penetrante e disse entre lágrimas:  

– Você salvou a minha vida.

Neste momento, quase todos que estavam próximos admiravam-se daquela cena. Mormente, os funcionários da loja, o gerente e outros colegas que haviam presenciado o escândalo do sábado anterior.

– Você salvou a minha vida.

Ela repetiu.

– O carro no qual eu deveria ter viajado, no sábado passado, quando se dirigia para aquele distrito, bateu, de frete, com uma caçamba, acidente no qual morreram todos os seus ocupantes; e eu só escapei porque não embarquei, devido aquela demora.  Muito obrigada, pois você salvou a minha vida; ela não parava de repetir…

Na verdade daquele, acidente todos havíamos tido notícia, porém nunca iríamos imaginar que se tratava exatamente do carro que ela teria de pegar naquele fatídico sábado.

Realmente, olhando por este ângulo aquele imbróglio salvou a sua vida. Não por mim, é claro, mas por uma determinação de Deus Ele sim está no controle e sabe o que foi, o que está sendo e o que será, nós de vez em quando, às vezes até sem querer e sem saber, é que somos os instrumentos para que as Suas determinações aconteçam, como foi naquele caso.

Contei esta longa história para que nós, também, pensemos um pouco antes de maldizermos alguns acontecimentos com os quais nos deparamos em nossas vidas já tão atribuladas. Porém, pelo que vimos, e, de fato, isso é real, acontece sempre, algumas adversidades sobrevêm ao nosso caminhar da vida para evitar coisas piores. Tenhamos, portanto, calma e tolerância.

PESSEMOS NISSO!

 

 

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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