O MOTORISTA SEU ALTER EGO

O homem, ao assumir uma posição de superioridade, se transforma, disso todos nós sabemos, de dóceis e complacentes cidadãos, os vemos, de um minuto para o outro, converterem-se nos mais intolerantes e, quase sempre, irascíveis, arrogantes.

É incrível e triste se observar esse fenômeno. Até mesmo nas situações mais comezinhas do cotidiano. Mais comezinhas e contraditórias, às vezes. No trânsito, por exemplo, a diferença entre o cidadão pedestre e o superior motorista é abissal.

É lamentável percebermos que aquele simples, frágil, indefeso e gentil senhor que sai de um templo religioso, por exemplo, normalmente acompanhado de sua esposa e filhos, com a Bíblia debaixo do braço, após ter escutado toda uma pregação, onde foram ditas e repetidas as mais belas palavras, pois ali ouviu, imagina-se, e refletiu, talvez, a palavra de Deus, sempre carregada de tolerância, compreensão, esperança e amor, passar por uma súbita e inexplicável  metamorfose.  

Ele sai daquele templo sagrado, andando como qualquer ser mortal; conversa com seus irmãos, despedindo-se deles e dirige-se ao local onde vai encontrar a sua nave “metamorfósica”. Ali chegando, abre a porta, entra e senta naquele trono transformador, mesmo que ainda sob os influxos daquelas emoções boas no coração, após ligar a ignição ele aciona o seu alterego e transforma-se, é outra pessoa.

A partir de então, parece crescerem-lhe os olhos, a boca e o nariz, nascerem-lhe pêlos em todo o seu rosto, e fecharem-se todas as compotas da audição, da percepção e da emoção para os epinícios gloriosos das canções, minutos atrás ouvidas no templo. Pois ele, a partir de então, é o todo poderoso motorista fatal, imprudente e irracional, não lembra sequer das palavras plotadas no vidro traseiro e nas laterais de seu possante, onde está escrito: “dirigido por mim, guiado por Deus” e “Deus é fiel”. Não, nada daquilo tem mais significado, são letras mortas. Quem de fato é o maioral naquele instante é ele, aquele que há cinco minutos era pedestre, e que agora se transformou… Ele acredita ter o todo poder sobre aqueles pobres, indefesos e insignificantes seres que usam os simples pés para se locomoverem. Que se cuidem, então!

Por que será que isso acontece? Por que o ser humano convive tão mal quando se depara com uma posição, mesmo que seja somente um pouco além das comuns, como, no caso, a assunção de uma direção veicular, por exemplo?

O acima relatado foi testemunhado e usado apenas como exemplo ilustrativo, nada contra as congregações e seus congregados, por quem nutro o mais absoluto respeito e consideração. É, que, exatamente por saber o bem que fazem as pessoas, acreditei que o exemplo se prestará, de forma educada para mostrar quão ambíguo e confuso é o ser humano, quando, por algum motivo se coloca um pouco acima do comum.

Fiz questão de seguir aquele carro, a partir do momento em que percebi a forma grosseira com que ele tratou o garoto que pastorava o seu carro. Notei que, mesmo antes de entrar no veículo, ele já estava alterado e esbravejando com o “flanelinha”. Acredito que aquela situação desencadeou um estresse que o fez dar uma buzinada daquelas bem longas e irritantes, logo na primeira esquina, pois um táxi ousou sair de onde estava e tomar-lhe, por frações de segundo, a sua frente, ato normal e rotineiro no nosso tráfego diário.

Seguiu com a sua possante máquina desrespeitando as normas de trânsito  e, pelo que contei, praticou, em menos de vinte minutos, além de desnecessárias, inúteis e bobas buzinadas, duas infrações: avançou um sinal amarelo, – pois certamente pensa, como a grande maioria dos que dirigem, ou seja, acredita também, imagino, que o sinal amarelo quer dizer: atenção, siga. Quando o correto é: atenção, pare, – fez uma retorno num local não permetido, a famosa “roubadinha”.

Continua a indagação. Por que se age assim? Por que ocorrem conosco, em tão pouco tempo, tais metamorfoses? Por que essa forma grosseira e desrespeitosa de nos comportarmos perante a sociedade e, por conseguinte, diante do outro, nosso irmão?

Isso não é novo, todos sabemos, e estamos cientes também que não vai ser uma simplória reflexão feita sobre o assunto que resolverá como num passe de mágica toda a questão. Não.

Devo dizer também que não é este o objetivo destas mal traçadas linhas. A intenção é a de que você e eu, individualmente façamos um exame, só nosso e pensemos: não seria melhor fazer diferente? Será que há justificadas necessidades para que ajamos com tanta grosseria? Estas atitudes resolvem ou atrapalham? Digo isso porque a síndrome a que sofre aquele senhor é quase epidêmica, infelizmente, quase todos nós sofremos.

Aventuro-me a dar uma resposta. Creio que é porque estamos pensando muito pouco. Melhor ainda, estamos refletindo muito pouco sobre as nossas potencialidades de evitar que determinadas situações estressantes aconteçam.

Será que aquele cidadão, aproveitando os influxos das orações, pouco antes ouvidas ou até mesmo praticadas, fizesse uma reflexão sobre aquele seu comportamento não chegaria, facilmente à conclusão de que seria melhor fazer diferente? Por exemplo, sabemos o quanto incomodam os nossos “guardadores” de carros: são feios, desdentados, sujos, mal vestidos, têm a pele feia, pois calcinada pela inclemência do sol, nem sempre são gentis e nem educados… Aparecem do nada e já vão dizendo aquelas, para nós estressantes frases: “dá ua oiadinha aí dotor?”, ou “pode dexá queu oio”, ou ainda, saltam sobre os nossos parabenizas com rodo e garrafa d’água na mão, já fazendo aquilo que nós nem sempre queremos…

Aquelas inconveniências, devemos entender, fazem parte de sua profissão. Aquela é a sua maneira de conseguir dinheiro para se alimentar e viver. Porém, pensamos logo que o que damos servirá para estímulo à droga, à bebidas, ao cigarros e, por conseguinte, outras contravenções. De fato, é verdade, às vezes. Mas, fazer o quê? Essas dependências, infelizmente, todos nós sabemos, são, também, conseqüências de uma situação que foge a todas as nossas possibilidades. Tenho absoluta certeza de que eles gostariam, também, de naquele instante, estar em outros lugares, fazendo outras coisas que não fosse esmolar, vendendo a única força de trabalho que acreditam ter, nos “incomodando”, no nosso direito de “superiores”. Eles é que são miseráveis e naturalmente conduzidos para aquela vida. Em vez de raiva, deveríamos ter dó. Em vez de os tratarmos mal, deveríamos tratá-los bem, afinal o que representam, para nós as parcas moedinhas que lhes damos de vez em quando? Acreditem, mais vale, para nós, aquele: “brigado dotor”! Ou aquele: “vá com Deus…”, do que uma praga ou até mesmo uma coisa pior, isso também acontece, nós sabemos.

E sobre a fração de segundo tomada pelo taxista? Será que a alarmante buzinada vai restituir o tempo “perdido?” Ele estava indo para casa. Qual a pressa? Qual o motivo desesperado por uma fração de segundo? Ganhar tempo? Para que? Mal sabe ele que aquela fração de segundo pode livrá-lo de um problema maior, logo ali na frente. Então, ganhar tempo para que mesmo?

De igual sorte o avanço do sinal amarelo, quando acende a luz amarela de um semáforo deve ser lido como uma determinação do Estado dizendo, em voz firme e sonora: “atenção, pare” e naõ, “atenção siga”.

E o retorno proibido? Aquela operação arriscadíssima foi feita há menos de duzentos metros do retorno regular da Avenida da Explosão. É tão próximo que fui lá retornei e o encontrei ainda parado, no sinal da Avenida Hermes Fontes. Foi nesse momento que notei o que talvez tenha desencadeado todo aquele clímax de aperreio e transgressão, percebi naquele instante que no interior do veículo se desenvolvia uma grande discussão com gestos largos e, ao que parecia, gritos e insultos. Que quadro lamentável. Não esqueçamos, eles saiam de uma Igreja.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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