De 2004 a 2009, ou seja, em seis anos, entre suas 85 e 90 primaveras, o poeta sergipano Santo Souza produziu cinco novos livros, quase um ao ano, sendo CREPÚSCULO DE ESPLENDORES o último. Até parece que não dorme. É que o poeta se pergunta, em suas intermináveis noites de insônia, o que foi que aprendemos com os desmoronamentos e derrocadas dos incontáveis e poderosos impérios, tomando como exemplo sumérios, babilônios, hititas, egípcios, persas, gregos, romanos, mongóis, árabes, alemães, turcos otomanos, franceses, espanhóis, ingleses, russos ou americanos; quais lições aproveitamos dos extensos campos de mortos e dos mares e rios de sangue correndo como lava a queimar as consciências nas páginas da história; quais os benefícios dessa destruição cíclica e desse retorno à ignorância e bestialidade, desse recomeçar do zero.
Longas noites de insônia acompanhado de fantasmas gritando aos seus ouvidos como se fossem trovões lançando raios e vulcões cuspindo lava, frias noites de insônia causadas pelas misérias sofridas no templo do seu próprio corpo e as inumeráveis sentidas compassivamente por seus vizinhos e todos da família humana espezinhados e esmagados em sua dignidade e seus direitos e que são somente pó e sombra nas extensas linhas, vírgulas e pontos da história, lida por ele muitas vezes em várias versões e preferentemente nos originais de língua espanhola, francesa, grega e até hebraica; eternas noites de insônia com imagens dantescas e esperpênticas (1) que lhe assaltavam, e assaltam, nas entrelinhas de sua vivíssima memória, como um choque contra um trem de alta velocidade e desgovernado.
Essa experiência mística é a grande força que fundamenta e dá veracidade e o mais alto valor literário a sua obra: a capacidade de colocar-se no lugar do outro, unida a seu extraordinário talento e engenhosidade, e um incansável esforço de ler tentando compreender os livros sagrados e os clássicos, aliado a sua própria condição de sobrevivente, por haver nascido em Riachuelo (2), cidade que depois de provar certo desenvolvimento entrou em processo de rápida decadência, tanto pelo crescente interesse na nova capital projetada – Aracaju, como por seus anacrônicos métodos produtivos e de exploração dos trabalhadores; sobrevivente sim, por ser filho de uma humilde mãe solteira, que lavava roupa no rio para mal ganhar a vida honestamente, isso no começo do século passado, em uma região esquecida de um país ainda em formação; sobrevivente, por ter na sua pele a cor negra, que até hoje, quase cem anos depois, tantos problemas de preconceito e discriminação ainda gera; sobrevivente, por ter sensibilidade apurada, autodidata com alma e habilidade de artista interessado e bem informado das transformações que impulsavam o mundo, com simpatia pelos ares de socialismo e liberdade em um tempo no qual o autoritarismo militar, como um dragão soprando fogo pela boca e nariz para defender suas crias, lutava para se impor em substituição ao absolutismo monárquico; sobrevivente, por, sendo artista da alma e da palavra, optar por cuidar de sua família, enquanto outros, principalmente escritores, assumiram publicamente suas opções políticas e, com o apoio e favorecimento dessas correntes, tiveram abertas as portas do êxito e do mundo e até se tornaram ícones, enquanto ele caía no esquecimento, apesar dos elogios à estupenda, incomum e original qualidade dos seus escritos; sobrevivente, resistente, consciente, como um verdadeiro professor, de sua missão, como guerreiro da luz a combater o bom combate, integrado e entregado a esse nobre campo de batalhas, a palavra empunhada como fuzil e espada transformados em melodia e ramo de flores, a palavra de denúncia do sem razão humano, a palavra empenhada pela Tolerância, a Compaixão, a Paz, a convivência e evolução humana.
Mas o fato de não ser compreendido preocupava a sensibilidade de criança na alma do poeta que, com mais de cinquenta anos relatando poeticamente a saga humana, adota uma linguagem ainda mais acessível para, sem deixar de voar como as águias sobre as grandes montanhas e penhascos ou a luz das estrelas viajando pelo cosmos, descender como bendita claridade espalhada em todas as direções e assim chegar à grande maioria, expressão essa tão bem empregada e defendida pelo poeta espanhol Blas de Otero.
Reconhecido por alguns grandes escritores e críticos da literatura brasileira como poeta de brilho original e experto mestre da linguagem subliminar, Santo domina a batuta mágica e se veste de músico regendo o turbilhão de palavras que avançam como tsunami de tragédias, dramas e emoções a inundar a pele dos sentidos, a compor sua sinfonia com avassalador ritmo matemático, com a melodia de intensidade apaixonante nos teclados e cordas de ciganos virtuosos tocando nas bodas de suas filhas e princesas.
E com esse ânimo de compositor perfeccionista e exigente diretor de orquestra, o poeta comparte palavras como quem comparte o pão, para que não esqueçamos o cântico espiritual nas ondas do mar e do vento, abrasados e abraçados pelo resplendor do sol no rosto do amanhecer, pois não lhe agrada o alvorecer sem música, já que, da madrugada fria, na qual as folhas em branco não param de incendiar seus olhos perguntando o que ele vai fazer com as palavras bailando entre sua mente e suas mãos, floresce a sinfonia de silêncios resplandecentes como a esperança no irisado cristal da aurora, a revelar que a pátria humana é esse céu ao revés que nos acolhe no descompasso das horas úmidas na terra fria, se não se encontra coragem e valor para ser o vermelho paixão no centro do fogo, a labareda ou chama mais bonita crepitando na fogueira desta efêmera viagem para a transformadora eternidade.
Depois da admirável e tão prolífica produção poética desse que chamo Grande Sacerdote das origens cantábricas célticas druídicas e Grande Sacerdote de Amón-Ra e dos Mistérios de Osíris, pode que muitos sigam se perguntando que surpresas ainda reservará o velho bruxo do Bairro Siqueira Campos (como diz Luiz Antonio Barreto), em Aracaju, Sergipe, Brasil. Mas, o que importa isso? Melhor deixar que as coisas sejam como devem ser e considerar que já é tempo de banharmos nossos pensamentos e ações na Luz de suas palavras e, de mãos dadas e para já, iniciarmos a construção de um novo e esplendoroso amanhecer.
Antonio Torres
Em Madrid, Madrid, Espanha, abril de 2010.
1) Esperpento: – Gênero literário criado por Ramón Del Valle-Inclán, escritor espanhol da Geração de 98 (1898), no qual se deforma a realidade, carregando nos rasgos grotescos.
– Distorção, degradação, deformação grotesca da realidade.
– Pessoa ou coisa notável pela feiura.
– Caricatura, sátira, burla, crítica.
2) Riachuelo: – O antigo povoado Pintos é uma cidade da Microrregião do Baixo Cotinguiba, entre Laranjeiras e Divina Pastora. O município foi o maior produtor de açúcar cristal, tecido e aguardente do Estado e o terceiro a ser eletrificado, com importante influência política e comercial por suas fazendas, usinas, fábricas e armazéns.