Até a década de 60, o Estado ainda estava muito atrelado à Igreja, e vice-versa. A Igreja exercia, ainda, muitas atribuições do Estado: educação – lembremos as fantásticas escolas paroquiais, faculdades e seminários; saúde – as Santas Casas de Misericórdia. No apoio espiritual, destacam-se os templos, casas paroquiais, catequeses, propagação da palavra de Cristo. Até nos momentos mais sofridos, em que se vão as vidas, a Igreja esteve e, ainda hoje, está presente. Em tempos idos, administrava funerárias e cemitérios. Enfim, antes, a Igreja, sem dúvida, tomava conta da vida do cidadão: este era batizado, crismado, doutrinado, educado, casado, curado, e, quando compulsoriamente era obrigado ao descanso eterno, repousava num jazigo que também pertencia à Igreja. Quer dizer que, desde o nascimento, ou até antes dele, o cidadão vivia e morria à sombra da Igreja. Convenhamos… isso significava um imprescindível apoio àqueles que, como eu, conviveram (amplo contato) com essa instituição. Às vezes, fico pensando: se não existisse a Igreja para cumprir essas importantes funções, como seria?
Pois bem, a minha cidade, naquela época, não fugia à regra, lá, era a Igreja que, de certa forma, geria a vida dos cidadãos, inclusive, em questões forenses, porque, no pequeno município de Groaíras, ainda não havia sequer um Cartório. A cidade dependia da Comarca de Cariré, município que ficava a uns 20 quilômetros (distância, hoje, considerada próxima, devido à evolução dos veículos e ao aperfeiçoamento das estradas). Nas décadas de cinquenta e sessenta do século passado, quando boa parte do transporte ainda era o cavalo ou o burrico, tudo era mais difícil, poucos tinham condição de ser um feliz proprietário de um transporte automotor.
Para facilitar as coisas, a Igreja, no meu rincão, assumia mais um ônus: em uma de suas dependências, funcionava uma escrivaninha do Cartório de Registro Civil, que se resumia, na verdade, a alguns livros, em que eram transcritos os dados de todos aqueles que nasciam e/ou casavam no município e nas redondezas; já havia as folhas de papel timbrado para o fornecimento das certidões e outros documentos.
Fui Auxiliar da Senhora que tomava conta da Secretaria. Meu trabalho se restringia a anotar as informações trazidas pelas pessoas que solicitavam as certidões de nascimento.
Normalmente, quem comparecia para registrar os filhos eram os pais. Mas, indivíduos de localidades distantes eram registradas com informações fornecidas por uma espécie de líder, ou seja, essa pessoa fazia anotações e o registro de todas as crianças ali, nesses lugares, nascidas: essa foi uma das razões de muitos equívocos de data, de nome e de sobrenome. Sempre havia confusão na hora de se fazer apontamento com aquelas informações atrapalhadas. Essas pessoas, na maioria das vezes, não eram suficientemente letrados para essa função.
Surgiam os problemas, quando as crianças atingiam a maior idade, e os pais compareciam aos Cartórios na busca da certidão de nascimento, documento principal para o início da vida legal como pessoa. Além disso, era tempo de a molecada regularizar a documentação. Quase sempre, os filhos migravam ao Sudeste: Rio de Janeiro, São Paulo… e, também, para Brasília. A escolha do local se relacionava a uma prática comum, naquela época: o jovem viajava para o local onde morava um parente ou, mesmo um conhecido. Fica fácil entender o porquê desse costume: imagine um menino do interior, que nunca viu um táxi, um prédio de três andares, um elevador, um ônibus e, em certos casos, nunca havia sequer usado uma ducha de banheiro, não conhecia uma torneira, uma pia, ou um aparelho sanitário? Seria muito difícil se haver sozinho, sem um apoio, num lugar tão diferente.
Nessa oportunidade, os pais procuravam o Cartório na intenção de uma cópia do registro civil do filho: o primeiro documento do brasileiro; naquela época, praticamente, o único. Ele é pré-requisito para a obtenção de outros. Quem não possui a certidão de nascimento não consegue a carteira profissional, a cédula identidade…
O que mais me impressionava, nesse contexto, era a ingenuidade daqueles pais, coitados, sem nenhum conhecimento na questão, eles achavam que toda solução seria ter aquela situação resolvida. Às vezes, nem se davam conta de que não eram os únicos a registrarem os filhos. E assim, gostavam de ser atendidos automaticamente. Nessa oportunidade, o pai, às vezes, o pai e a mãe dizia(m):
— Eu vim tirar resistro do minino.
— Qual o nome dele?
— Eu num me lembro não! Muié, como é o nome do Zé?
— Vixe home, eu tombem num me lembro não. Mai quando nóis vei batizar ele, demo o nome, e foi tudo anotadim aí nexe livrão.
— Tá bem, pois me digam o dia, mês e ano em que ele nasceu.
— O Zé nasceu depois do Ormar, num foi?
— Não, foi depois da Ormarina, home.
— Num foi não, o Ormar é que é mais véi do que o Zé.
— É, home, mai a Ormarina também é mais véia.
Nesse momento, o clima esquentava e, fatalmente, iniciava-se uma acirrada discussão (ataques de parte a parte), com a predominância, é claro, das opiniões do marido, que encerrava a conversa repetindo o que, muitas vezes, já havia falado:
— É, quando arrente rem aqui, arente paga, eles anota aí nexe livrão, e agora num sabe onde tá e ainda ficam preguntano arrente. Nóis num sabe não seu minino, roceis escreveram aí. Eu paguei, e agora aprocure, e num fique preguntado arrente. Nóis quer o dicumento do nosso fio. Ele rai pro Rio de Janeiro ganhar dinheiro pra ajudar nóis. Arria! Ramo lá, me dê o resistro do meu fio.
Não tinha jeito, tínhamos de, pacientemente, retroagir 18 anos e procurar folha por folha do livro para atendê-los.