O Vampiro do Aribé

O Vampiro do Aribé

 

Sei que a chacota vai ser grande.  Sei que vão me taxar como mentiroso. O clube dos céticos vai jogar meu nome no rol dos aparvalhados, dos que deixam a imaginação dominar a virtude da razão. Porém, não posso me acovardar, quando a situação exige providência e previdência.  Minha reputação vai paro o limbo, mas preciso praticar a denúncia. Contarei esta história – mesmo que muitos a rotulem como estória -, mesmo sem saber de seu inteiro teor, pois o tanto que sei advém do que alguns poucos amigos – vítimas – me revelaram, entre informações pesquisadas e agruras por eles vividas. Pediram-me  prudência e discrição. Concordo com eles, quando acreditam que a sociedade aracajuana ainda não está preparada para agir contra o nefasto, mas desejo que a população fique atenta e precavida. Assim, serei lacônico nesta primeira investida. Pois bem…

Em 1637, o Conde Johan Maurits von Nassau-Siegen, que veio a ser, pela boca do brasileiro, o governador João Maurício de Nassau, chegou em Recife. Ele não veio só. Na sua comitiva, um grupo de 46 artistas, cronistas, naturalistas e arquitetos, que desembarcaram na província com a finalidade documentar e desenvolver a sociedade recifense.  Relatou-me o professor e historiador Bittencourt (não vou revelar o nome completo, para proteger a sua integridade física), que, apesar de ter seus costados amparados nos Nassau-Siegen, uma família de aristocratas alemães que tinha raízes fincadas no Sacro Império Romano-Germano e ser descendente direto de Guilherme, o Taciturno, pai da república holandesa, Maurício de Nassau atendia a todos com muita simplicidade e bonança. Desse fato, qualquer interessado tem conhecimento. Todavia, o professor Bitencas (como eu o chamo) revelou-me algo de mais abissal, o que agora tenho a ousadia de repassar.

Em uma sarjeta da mesma embarcação que trouxe Nassau, viajava, no recanto mais escuro, entre barris de rum, caixas de carne seca, pinceis, telas, esquadros, remos e equipamentos de desembarque, um velho conhecido do comandante. Sebastian Von Rosemblit, o Barão de Rosemblit – não se sabe ao certo que seja esta a sua alcunha –  fora enviado, com ânimo de exílio, pela Companhia das Índias Ocidentais, esta responsável por  administrar a colônia da Nova Holanda no Brasil e por convencer o governo holandês da importância do comércio do açúcar para a sua economia. O tal passageiro não estava entre os missionários. O sinistro viajante estava a ser descartado pela Companhia, por ser uma significativa ameaça para toda a Europa. São pouco precisas as informações que se tem do Barão, mas se acredita que ele tenha sido uma das vítimas fatais da inquisição, por sustentar publicamente a idéia de que “a arte é a principal maneira do homem se religar a Deus”. Relatos históricos, dos mais sombrios, contam que Sebastian fez amizade e perambulou – mesmo depois de morto – entre os artistas do Renascimento, e que esteve muito próximo de Brunelleschi, Botticelli, Leonardo da Vinci, Michelângelo e Rafael. Contam que Miguel de Cervantes chegou a denunciar à corte espanhola, que o Von Rosemblit seria um morto-vivo, que destruía, mesmo sem querer, as obras e os artistas que admirava.

Rosemblit em Aracaju

Em 1644, Maurício de Nassau fora compelido a deixar Recife e voltar para a Europa. A Companhia das Índias não estava satisfeita com a administração da colônia da Nova Holanda no Brasil, já que o ilustre colonizador priorizava os desenvolvimentos artístico, cultural e arquitetônico da região, em detrimento do interesse comercial. Diante dos olhares desconfiados dos artistas e da população recifense, que já haviam percebido as maldições do funesto morador, e sem a proteção de Nassau, não lhe coube outra alternativa, a não ser a de ser um vagante, quando fez morada provisória em diversas outras regiões, inclusive na cidade de Salvador, onde teve uma morada mais duradoura. Tenho relatos de que o ilustre Barão foi extremamente influente no desenvolvimento artístico das regiões em que passou, que chegou a constituir família, e que até os dias de hoje conserva sua influência, sendo responsável por eventos culturais de relevante importância, alguns gloriosos, a citar o surgimento da primeira gravadora de discos do Brasil, – a Rosemblit -, e outros eventos, de cunho maléfico, como o incêndio do Mercado Modelo, em Salvador.

Em 1916, com a Rede Ferroviária Federal expandida até Aracaju, especialmente na região do Bairro Siqueira Campos, conhecida como Aribé, chega em um vagão com janelas lacradas, todo alugado para um único passageiro do bloco, ele: Sebastian van Rosemblit. E por ali ficou. Desde então, o Barão é residente do Aribé, em uma casa que já insisti muito para que me descrevessem com exatidão qual é, mas que me negaram a informação, sob a alegação de que eu estaria mais seguro se não soubesse. Fico ansioso, mas agradeço pela amizade. São meus verdadeiros amigos. Gostaria de citá-los, mas vou ser prudente também. Todos estes amigos, meus confidentes do caso, passaram e passam por mazelas decorrentes da luta que empregam contra o nefasto. Um deles, tenho saudades… já não está entre nós. Era um dos mais talentosos compositores que estas terras já teve. Irreverente, destemido, assim que soube do Vampiro do Aribé – como todos chamam o maléfico – foi uma das vítimas do nefasto, chegando a falecer. Sobrou o seu chapéu Panamá, este que o Rosemblit fez tudo para colocar as mãos, sem sucesso, graças. Outro é um jornalista famoso e, há muito tempo, desde que morava em Salvador, deflagrou uma guerra direta contra o vampiro. Por tal coragem e amor a arte, este jornalista já foi prejudicado na sua saúde. Ficou cadeirante, perdeu uma perna, depois perdeu a outra, e hoje tem dificuldade em viver a sua tão adorada boemia, lutando para se recuperar dos maus olhados do meliante Barão. Existe um outro amigo meu, grande compositor, que não sai de casa, com medo do vampiro, e se desculpa dizendo que fica tomando conta dos filhos.

Existem vários outros artistas que já foram prejudicados pelo cazumbi. Alguns deles nem sabem de sua existência. Os que sabem contam que o agourento não quer prejudicar a arte. Reconhecem que o famigerado por  ela tem profunda admiração e precisa dela para viver. Tanto que, ao invés de se alimentar de sangue – comum aos vampiros do nosso imaginário – ele se alimenta de arte. O problema é que a prática dessa contemplação causa estragos aos artistas e às suas obras. Se o famigerado contempla um quadro, ele se borra de tinta. Se aprecia uma voz maravilhosa, o cantor tem sua garganta afetada. Se admira um livro, o escritor fica com problemas de amnésia ou Mal de Parkinson. Se admira um bom violonista, as cordas do violão se rompem em pleno concerto, ou as mãos do instrumentista sofrem alguma lesão. Todavia, segundo os mais inteirados sobre o assunto, o maior perigo que o vampiro oferece é devido ao fato de ele ter o poder de dominar mentes. Existem suspeitas que ele chegou a dominar a mente de um ilustre sergipano, este que investido do cargo de secretário da cultura, somente valorizava e destinava recursos ao apoio e contratação de artistas de expressão mais clássica, e de outras regiões, desfavorecendo os artistas locais, posto que alguns são seus inimigos por saberem de sua malevolência. Pobres artistas locais… apesar de tão talentosos, muitos não conseguem uma projeção maior. Será que o Barão Rosemblit tem influência neste fato?

Proteja-se contra o vampiro

Ele está por aí, frequenta shows, galerias, teatros, bibliotecas. Suspeitam que o estado calamitoso que a biblioteca pública Epifânio Dória chegou se deve muito à sua presença nefasta no local. Dizem que as inúmeras reformas que o Teatro Atheneu sofreu, é devido ao seu poder de destruição. Não sei bem sobre tudo. Ninguém sabe. Talvez eu nem deveria publicar este texto. Faço porque sou um grande consumidor de arte, porém, não destruo a minha seiva. Quero protegê-la. Quem sabe, tudo não passa de uma neurose coletiva. Não sei. Pelo sim, pelo não, é melhor andar armado. Qual arma? Vai ser difícil, para os que tem a arte na veia, portar esta arma. Segundo os que estão na linha de frente contra o vampiro que gosta de arte, a única arma que o faz recuar é a música dessas bandas de forró eletrônico, arrocha, rodeio americanizado, pagode de baixa qualidade e etc – sabemos do que estou falando. Esses estilos estão prosperando, pois não contam com um vampiro para atrapalhar. Vou andar armado. Até já instalei um som potente no meu carro, e me disfarcei de boyzinho burro. Estou protegido. Ou será melhor arriscar a enfrentar o vampiro desarmado, para não sofrer a amargura de se sujeitar a ouvir essas porcarias?

Quem souber do nefasto, faça contato.

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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