O STF e as uniões homoafetivas – Parte II

O Ministro Carlos Ayres Britto, relator da ADPF n° 132 e ADI 4227, começou o seu voto pela abordagem preliminar do modo como recebia essas ações, para melhor propiciar à Corte o exame mais apurado e mais amplo da controversa matéria jurídica.

Em suma, o Ministro Carlos Ayres Britto as analisou como ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de interpretação conforme a Constituição, do dispositivo do Art. 1.732 do Código Civil, cujo teor é o seguinte:

Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família;

Para ser admitido qualquer pedido de interpretação conforme a Constituição, o pressuposto exigido pela própria jurisprudência do STF é o de que a norma em debate admita mais de uma interpretação.  Foi o ponto de partida de seu voto, ao apontar que os autores das ações pediam a interpretação conforme a constituição

(…) para viabilizar o descarte de qualquer intelecção desfavorecedora da convivência estável de servidores homoafetivos, em comparação com a tutela juridicamente conferida à união igualmente estável de servidores heterossexuais. O que, em princípio, seria viável, pois entendo que os dispositivos em foco tanto se prestam para a perpetração da denunciada discriminação odiosa quanto para a pretendida equiparação de direitos subjetivos. E o fato é que tal plurissignificatividade ou polissemia desse ou daquele texto normativo é pressuposto do emprego dessa técnica especial de controle de constitucionalidade que atende pelo nome, justamente, de “interpretação conforme à Constituição”, quando uma das vertentes hermenêuticas se põe em rota de colisão com o Texto Magno Federal. (grifou-se).

O Relator apontou ainda em seu voto que essa variedade interpretativa se constata em controversas decisões judiciais e administrativas proferidas em todo o país, contrapondo, de um lado, interpretações que não reconhecem à união de pessoas do mesmo sexo os mesmos direitos reconhecidos por lei à união de pessoas de sexos diferentes, e, de outro lado, interpretações que reconhecem tal igualdade de tratamento jurídico dos direitos decorrentes dessas uniões:

É que ninguém ignora o dissenso que se abre em todo tempo e lugar sobre a liberdade da inclinação sexual das pessoas, por modo quase sempre temerário (o dissenso) para a estabilidade da vida coletiva. Dissenso a que não escapam magistrados singulares e membros de Tribunais Judiciários, com o sério risco da indevida mescla entre a dimensão exacerbadamente subjetiva de uns e de outros e a dimensão objetiva do Direito que lhes cabe aplicar (grifado no original).

Passando à análise do mérito propriamente dito, o Ministro Carlos Ayres Britto sustentou que é a própria Constituição que fornece as respostas decisivas para o tratamento jurídico que deve ser conferido às uniões homoafetivas que se caracterizem pela durabilidade, não-clandestinidade e continuidade, além do propósito de formação de uma família.

Seu pressuposto é o de que as uniões homoafetivas são caracterizadas por amor, afeto e carinho entre pessoas do mesmo sexo, a caracterizar autêntica entidade familiar, não se tratando de união mercantil, empresarial ou meramente patrimonial:

Trata-se, isto sim, de um voluntário navegar por um rio sem margens fixas e sem outra embocadura que não seja a experimentação de um novo a dois que se alonga tanto que se faz universal. E não compreender isso talvez comprometa por modo irremediável a própria capacidade de interpretar os institutos jurídicos há pouco invocados, pois − é Platão quem o diz -, “quem não começa pelo amor nunca saberá o que é filosofia”. É a categoria do afeto como pré-condição do pensamento, o que levou Max Scheler a também ajuizar que “O ser humano, antes de um ser pensante ou volitivo, é um ser amante”.

A Constituição, segundo Carlos Ayres Britto, não admite, salvo expressas disposição dela própria em contrário, que o sexo das pessoas (masculino ou feminino) sirva como fator de desigualação jurídica. Quando a Carta Política enuncia, como objetivo fundamental da República, dentre outros, promover o bem de todos, sem preconceitos de sexo (Art. 3°, inciso IV), ela explicita “vedação de tratamento discriminatório ou preconceituoso em razão do sexo dos seres humanos. Tratamento discriminatório ou desigualitário sem causa que, se intentado pelo comum das pessoas ou pelo próprio Estado, passa a colidir frontalmente com o objetivo constitucional de ‘promover o bem de todos’”.

O “bem de todos”, como bem lembrou, é expressão do “constitucionalismo fraternal”, voltado à integração comunitária das pessoas, de modo que “não se é mais digno ou menos digno pelo fato de se ter nascido mulher, ou homem”.

Pois bem, para Carlos Britto, dizer que a Constituição proíbe a discriminação em razão do sexo é o mesmo que dizer que a Constituição proíbe a discriminação por orientação sexual (como algumas Constituições Estaduais expressamente o fazem, a exemplo da de Mato Grosso e Sergipe):

(…) cuida-se de proteção constitucional que faz da livre disposição da sexualidade do indivíduo um autonomizado instituto jurídico. Um tipo de liberdade que é, em si e por si, um autêntico bem de personalidade. Um dado elementar da criatura humana em sua intrínseca dignidade de universo à parte. Algo já transposto ou catapultado para a inviolável esfera da autonomia de vontade do indivíduo, na medida em que sentido e praticado como elemento da compostura anímica e psicofísica (volta-se a dizer) do ser humano em busca de sua plenitude existencial (grifado no original).

Logo, a interpretação constitucional consentânea com a garantia da dignidade da pessoa humana é aquela que garante, por antecipação, a total licitude da preferência sexual das pessoas:

Afinal, se as pessoas de preferência heterossexual só podem se realizar ou ser felizes heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem na mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente. Ou “homoafetivamente”, como hoje em dia mais e mais se fala, talvez para retratar o relevante fato de que o século XXI já se marca pela preponderância da afetividade sobre a biologicidade. (grifado no original).

Nessa toada, o uso da sexualidade humana faz parte da autonomia de vontade, caracterizando direito subjetivo individual clássico, oponente ao Estado e a particulares, e que se concretiza sob a forma de direito fundamental à intimidade e à privacidade, cláusulas pétreas constitucionais. Daí ter, em seu voto, registrado a norma do inciso X do Art. 5° da Constituição (“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”) e a do § 1º do mesmo artigo (“as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata”), “sendo certo que o direito à intimidade diz respeito ao indivíduo consigo mesmo (pense-se na lavratura de um diário), tanto quanto a privacidade se circunscreve ao âmbito do indivíduo em face dos seus parentes e pessoas mais chegadas (como se dá na troca de e-mails, por exemplo).”.

Partindo desses pressupostos hermenêuticos extraídos da Constituição, o Ministro Carlos Britto diz caber questionar “se a Constituição Federal sonega aos parceiros homoafetivos, em estado de prolongada ou estabilizada união, o mesmo regime jurídico-protetivo que dela se desprende para favorecer os casais heteroafetivos em situação de voluntário enlace igualmente caracterizado pela estabilidade.”.

E Carlos Britto começa a responder ao questionamento apontando que o caput do Art. 226 (que inaugura o capítulo no qual a Constituição cuida da família, criança, juventude, adolescente e idoso) reserva especial proteção à família, mas família aí entendida em sentido coloquial, como núcleo doméstico, não importando se constituída formalmente ou informalmente, nem importando se integrada por casais heterossexuais ou por pessoas assumidamente homafetivas. Para chegar a essa conclusão, cita diversas passagens do texto constitucional nas quais a referência ao termo “família” não está atrelada a qualquer formalidade cartorária ou a casais heteroafetivos (Art. 7°, IV; Art. 5°, XII, XXVI, LXII, LXIII; Art. 191, IV; Art. 201, § 12°; Art. 203; Art. 205; Art. 221, IV): “vale dizer, em todos esses preceitos a Constituição limita o seu discurso ao reconhecimento da família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica”.

Sendo assim, essa diretriz, que se extrai do caput do Art. 226, deve orientar toda a compreensão de seus parágrafos e incisos. Noutras palavras: todas as demais normas que integram a estrutura do Art. 226 devem ser compreendidas a partir dessa noção de que a família é um fato social caracterizado por afeto, amor, comunhão de ideais e sentimentos, nada importando se formalmente constituída ou não, ou se formada por casais heteroafetivos ou homoafetivos.

A partir daí, arremata:

Assim interpretando por forma não-reducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico. Quando o certo − data vênia de opinião divergente – é extrair do sistema de comandos da Constituição os encadeados juízos que precedentemente verbalizamos, agora arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo doméstico independente de qualquer outro e constituído, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade. Pena de se consagrar uma liberdade homoafetiva pela metade ou condenada a encontros tão ocasionais quanto clandestinos ou subterrâneos (grifos no original).

Daí concluir que:

a) quando o § 1° do Art. 226 prevê que o casamento é civil e é gratuita sua celebração, bem assim quando o § 2° prevê que o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei, o que se tem é que o casamento civil perante o juiz ou o casamento religioso com efeito civil é uma das modalidades de constituição de família, mas não a única;

b) o § 3° do Art. 226, ao estabelecer que “Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”, cuidou de uma nova modalidade de formação de núcleo doméstico, batizado de “entidade familiar”. E a referência à união estável entre homem e mulher aí decorre, apenas, de duas circunstâncias particulares: o incentivo ao casamento como forma de reverência à tradição sócio-cultural-religiosa do mundo ocidental, sabido que o casamento civil brasileiro tem sido protagonizado por pessoas de sexo diferente, até hoje, e também para não perder a oportunidade de estabelecer a horizontalidade dessas relações jurídicas, tendo em vista que a mulher que se une ao homem “em regime de companheirismo ou sem papel passado” ainda é vítima de comentários desairosos de sua honra objetiva, “tal a renitência desse ranço do patriarcalismo entre nós”. Noutras palavras, diz o Ministro Carlos Britto, que não se apegue à literalidade da expressão união estável ente homem e mulher para matar o espírito fraternal da Constituição:

(…) que não se faça uso da letra da Constituição para matar o seu espírito, no fluxo de uma postura interpretativa que faz ressuscitar o mencionado caput do art. 175 da Constituição de 1967/69. Ou como diz Sérgio da Silva Mendes, que não se separe por um parágrafo (esse de nº 3) o que a vida uniu pelo afeto. Numa nova metáfora, não se pode fazer rolar a cabeça do artigo 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro.

c) a terminologia “entidade familiar” não é diferente de “família”, pois não há hierarquia entre as formas de constituição de um novo núcleo doméstico.

d) as diferenças entre “união estável” e “casamento civil” já são antecipadas pela Constituição, como por exemplo a exigência de estabilidade para a caracterização da união estável (exigência que não se apresenta para o casamento), ou ainda a previsão da dissolução do casamento pelo divórcio, algo do que não cuida a Constituição para a dissolução da união estável: “Mas tanto numa quanto noutra modalidade de legítima constituição da família, nenhuma referência é feita à interdição, ou à possibilidade,de protagonização por pessoas do mesmo sexo. Desde que preenchidas, também por evidente, as condições legalmente impostas aos casais heteroafetivos”;

e) não se proíbe nada a ninguém senão para assegurar o pleno gozo de direitos ou liberdades contrapostas; mas aos heteroafetivos não assiste o direito à não-equiparação jurídica com os homoafetivos, pois os primeiros não são superiores aos segundos, nem são beneficiados com titularidade exclusiva do direito à constituição de família:

Aqui, o reino é da igualdade pura e simples, pois não se pode alegar que os heteroafetivos perdem se os homoafetivos ganham. E quanto à sociedade como um todo, sua estruturação é de se dar, já o dissemos, com fincas na fraternidade, no pluralismo e na proibição do preconceito, conforme os expressos dizeres do preâmbulo da nossa Constituição.

f) o § 4° do Art. 226 (“entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”) cuida de uma outra expressa modalidade de família, qual seja a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, o que a doutrina entende como “família monoparental”, “(…) sem que se possa fazer em seu desfavor, pontuo, qualquer inferiorizada comparação com o casamento civil ou união estável”. Ainda aqui, a Constituição não é taxativa, pois não se pode recusar a condição de família monoparental àquela formada, por exemplo, por qualquer dos avós e um neto, ou até mesmo por tios e sobrinhos.

Com todos esses fundamentos, o Relator, Ministro Carlos Ayres Britto, julgou procedentes as ações, para conferir ao Art. 1.723 do Código Civil

(…) interpretação conforme à Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas conseqüências da união estável heteroafetiva.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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