Uma reação lúcida

Vem de Portugal, soube-o pelo noticiário, que a Academia Portuguesa se insurgiu, mediante abaixo-assinado, contra a recente reforma ortográfica, descabeçada e despropositada, que foi aprovada pelo Presidente Lula.

 

Abaixo do equador, todos sabemos que o Presidente Lula é um político competente, verdadeiro alcalóide anestesiador das massas ignaras, mas como tal, iletrado e analfabeto, que até se alegra e se vangloria por falar errado e escrever pior.

 

E agora, só para dizer que escrever certo vale pouco ou quase nada, nosso presidente, se arvorando mais castiço que os doutos beletristas, determina a imediata reforma lexicográfica, desatualizando dicionários na paulada, referendando mais uma tolice aprovada pelo nosso parlamento.

 

Mas, para lamento de nós todos e de toda a imensa humanidade, o nosso congresso não se eleva nos seus atos, nem nos desatos de tantos desacatos, afinal é sobremodo repleno de homens miúdos e de idéias bem menores.

 

Pois bem, este conclave de impolutos homens, cidadãos honestos e varões incorrutos, jamais dedicados à própria causa, nem a mais que própria algibeira, cometeu por arte de mor arteira, aprovar a reforma ortográfica do idioma pátrio, achando com isso que o linguajar camoniano se tornaria uma referência universal.

 

E a reforma, qualquer reforma, nos atos e na vida de um idioma, representa um verdadeiro atentado à vida da própria língua, porque embaralha tudo, mistura o sábio com o vulgo, e o ditado de ambos se nivela em erros até que novos hábitos e convenções atinjam a alma do ser, apaziguando-o para uma realidade mudada na paulada.

 

Todos agora estamos a escrever erradamente; não há mais trema, por exemplo, lingüeta virou lingueta, lingüiça virou linguiça, lingüista virou linguista, mas a pronúncia restou igual.

Não será ótimo explicar à criança e ao gringo que nos visita que linguiça não rima bem com carniça?

 

Não será bastante inovador dizer ao poeta caçador de rima, que o vulgo sexo feminil melhor se arrima no vil da nova grafia de lingueta?

 

Ó, quantas odes se farão deste supremo desejo masculino, agora ensejando o retinir de cacetas entremeados de vibratos de linguetas. 

 

Mas chega de safadeza de insinuações pecaminosas em digressões ominosas, afinal a linguiça não enguiça na tripa onde é socada. Daí porque não merecia que lhe retirassem o trema, o duplo ponto tão bonitinho dos dígrafos com u bem realçado quando bem pronunciado.

 

E assim até o qüinqüelíngüe, aquele que fala ou escreve em cinco línguas, virou um quinquelingue, um pichilingue qualquer, que rouba, furta, um pirata da perna de pau, metendo o pau no pobre idioma, tão machucado com tantas caneladas e socos.

 

Sim, porque o soco vem também no acento diferenciador do pôr como verbo e do por preposição, do pára mandando deter o regresso, para o para prepositivo. E o acento nivela o propositivo com o prepositivo, afinal mandar-me parar de escrever bobagens é mais louvável que mandar-me para os quintos dos infernos. Mesmo sabendo que por ali tem muita gente ardendo de raiva reclamando dos gramáticos que cassaram o hífen, comeram o trema e aboliram o acento diferenciador.

 

Mas, se estou a dizer bobagens desculpem-me. Eu sou um descrente dos lexicógrafos e dos gramáticos. A estes, prefiro os matemáticos, daí a minha revolta com tantas reformas gráficas tolas, verdadeiro atentado ao idioma e um desserviço a quem aprendeu alguma coisa.

 

Daí, ser bom repetir: eu preferir os matemáticos aos mestres em português. Porque a coisa pior do mundo é a regra que não vige, que não se mantém, que não permanece, e muda ao sabor de pruridos de gostos e trejeitos de meneios e rebolados, só dignos do inviril e do curvilíneo proceder.

 

A matemática em sua imutável verticalidade prescinde até do próprio Deus que a criou.  

Sim, porque Deus a idealizou para depois descansar, ficar inacessível e distante das tolices dos homens. E os homens não percebem; teimam em fazer suas bobagens e pedem a Deus para vir corrigir a sua obra de destruição, de si e da sua circunstância.

 

E a matemática independe de qualquer circunstância, vigendo sempre igual, rigorosamente igual, em todos os idiomas, em qualquer simbologia, desafiando latitudes e longitudes, indiferente às atitudes de todos os quadrantes, imperando nas galáxias a descobrir e nos novos mundos a desvendar.

 

Os postulados de Euclides, as proposições de Arquimedes, as desigualdades de Pitágoras serão eternas na tríade ortonormal em que vivemos, ou no espaço onidimensional euclidiano, onde sempre é definível uma álgebra, com as suas operações bem postuladas, e a sua imutável métrica.

 

E até os espaços não-euclidianos que representam um desafio ao axioma a desvendar o sonho e o caos na existência da natureza, não se afastam da regra e do bem posto teorema.

 

Porque a matemática não oscila, e nem vacila. Que o digam a álgebra booleana e a transmissão digital do claro-escuro, ou da luz-escuridão, como um fortíssimo de notas e pausas, a realizar a revolução das comunicações, só porque a soma e o produto com suas simplórias propriedades, permitem toda operação do real, num conjunto binário do nada e do todo.

 

Porque o nada é a treva, e o todo é a luz. Mesmo que a isso se chame uma bola oca ou uma bola cheia, ou um zero e um xis, por convenção. Com tais bolas vazias ou cheias, é possível somar, multiplicar, exponenciar, derivar, integrar, desenvolver séries logarítmicas, trigonométricas, hipergeométricas e hiperbólicas, seja em geometrias retangulares e esféricas, ou outras de formas inusitadas, porque elípticas, oblatas, prolatas e parabólicas, utilizadas aos gostos e às necessidades dos problemas nem sempre iguais.

 

Daí eu preferir os professores de matemática aos de português. Porque o menino estuda português do berço ao tumulo e não aprende. Enquanto que o aluno de matemática, aprende e não esquece.

 

Quem aprende a somar frações, operar logaritmos, passear na geometria espacial ou analítica e na trigonometria jamais esquece. Só a esquecem os que jamais tiverem necessidade de utilizá-la.

 

Já aprender português é um desafio à inteligência e à competência do mestre, porque o idioma é uma necessidade permanente e ninguém poderá dizer que dele não carece. E no entanto,não aprende.

 

E não se fale mal do mestre do vernáculo. A questão é de desapreço com o idioma, afinal o erro idiomático vira até charme na boca de muitos como do nosso Presidente, por exemplo, que não tem pejo nem pede licença para mudar a grafia das palavras.

 

E a macacada de ilustrados e de palustres o aplaude em grande efusão, só por gerar uma nova confusão.

 

Uma confusão que agrada aos mestres de português porque lhes aumenta a importância, ampliando requisições de corretores e de professores; um lobye aguerrido a crescer cursos de interpretações e dissertações para os concursos públicos de lixeiros a engenheiros, de médicos e dentistas, advogados a pianistas, afinal muito mais importante que a análise de toque retal urológica poupando a dor das hemorróidas, é a análise morfológica por mais bem assestada e profilática na sintaxe e na prosódia.

 

Assim dos profissionais do serviço público se requer cada vez menos habilidade funcional nos diversas atividades profissionais, preferindo-os ilustrados em conjugações abundantes e defectivas; tudo o que abunda e tornam defeituosos os concursos de ortopedistas a ortodontistas, projetistas de concreto protendido, de redes elétricas e de resistência mecânicas, de analistas de sistemas e algoritmos computacionais, a requisitarem responsabilidades mais sérias que a prosódia e a morfologia. Mas, cobra-se pouco do essencial e específico porque se teima muito mais em dar ao professor de português uma missão de reprovar todos, em todo o tempo do viver, e da vida, embora seja ele o responsável pelo idioma achincalhado.

 

E agora, mais violentado ainda com esta reforma boba.

 

Mário Cabral o grande intelectual sergipano recenteente falecido na Bahia. 

E quando eu falo mal dos professores de português nesta hora, é porque todos, sem exceção, estão a bater palmas com tal mudança, sobretudo por aqueles que escrevem tão pouco, mas corrigem muito mais, quando deviam escrever bem mais, e bem melhor, e bem mais bonito, para não deixar espaços para diletantes e ignorantes, e claudicantes ruminantes como eu.

 

Mas, em apoio deste meu ruminar por refletir, quero me arrimar nas palavras de Mário Cabral, o acadêmico sergipano de criação polifônica e luminosa, jamais alcançado por audaz lexicógrafo, e que recentemente faleceu na Bahia.

 

É Mário quem se define em auto-retrato: “O meu horror à gramática, impediu-me sempre, de comparecer às aulas de português. Jamais consegui analisar os Lusíadas, nem a colocar, conscientemente, os pronomes nos seus devidos lugares. Ainda hoje os coloco de palpite”.

 

E eu lhe acrescento: – Nem por palpite eu me oriento! O que me salva é o programa Word da Microsoft, que tinge de verde ou de vermelho o erro gramatical, de desinência ou de concordância.

E os professores de português acham pouco e mudam a regra, até para me forçar a adquirir um dicionário atualizado ao Sr. Gates, que cobra caríssimo, e deve estar agora bem feliz com a novidade.

 

Assim, eu vejo com muita simpatia esta rebeldia lúcida dos intelectuais portugueses contra essa tola reforma ortográfica de Lula.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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