Rua Laura Fontes IV – Sendo criança, como avicultor frustrado e astrônomo inusitado.

Como falei anteriormente, os primeiros meninos da Rua Laura Fontes foram os filhos de Aíde e Edmundo Guerreiro, moradores da casa de número 166. Edmundo Filho, o Edi, era o mais velho. Depois vinham Marcos Vinícius, o Marquinhos, e Cláudio Luís, o Cacá.

 

Na verdade, o primeiro riso infantil dali fora dado por um casal de garotos da casa 146, filhos de Murilo e Hortência Garcez, mas como sua presença na rua foi por um tempo muito exíguo, restou uma lembrança menor.

 

Murilo fora o primeiro a residir, o primeiro a reformar a casa também, e o primeiro a sair da rua. A casa foi adquirida por José Luis e Tereza Cristina Carvalho Souza, pais dos garotos Adriano e Sandro que muitas histórias e folguedos alegraram aquele trecho.

 

Também moradores da rua eram os meninos Marcelo, Márcio e Marcos, o Marquinhos, filhos de Janete e Jurandir Conrado, Gustavo e Paula, filhos de Paulo e Lourdinha Maciel, entre outros já citados nos textos anteriores.

 

Alguns desses garotos chegaram com seus pais, outros já nasceram na rua.

 

Salvo engano, os primeiros a nascer na rua foram os meus filhos Daniela, Machado e Junior; Daniel Setton, filho de Cristina Setton; Marquinhos Conrado, filho de Janete e Jurandir Conrado; Sandro Carvalho de Tereza Cristina e José Luís, Márcio e Israel da família Paes, Tony Erald, Eraldo Junior e Alexandre, filhos de Rita e Eraldo Barreto, e os filhos de Waldemar e Waleska Cunha, os loirinhos de olhos azuis da esquina, já na Praça da Imprensa: Tarcísio, Thiago, Marcelo, Pedro e Helena.

 

Outros nomes talvez possam ser incluídos, alguns em idade pouco maior, outros mais novos, netos ou descendentes de moradores, cuja passagem não era tão permanente que suscitasse uma maior lembrança, afinal em tinta e seis anos muito transitoriedade aconteceu. Direi, porém, que deste relato participam os que me foram mais próximos. Alguns por frequentarem minha casa, outros porque mais ligados às brincadeiras de meus filhos.

 

Por outro lado, em muitas residências, os moradores já chegaram trazendo seus filhos, alguns já adultos, outros adolescentes ou quase isso. Refiro-me aos filhos das famílias Setton, Paes, sem falar de outras casas em que não havia crianças.

 

Mas, havia também os que ali chegavam como netos dos moradores, como é o caso de Bruno Setton, Márcio e Israel Paes, já citados e Augusto Resende.

 

Também quero incluir nesta lista um menino do outro trecho da rua. Trata-se de Marcos José Barreto, filho de Cláudio Messias Barreto e da minha professora Maria Viana Barreto, o “Marco Mãozinha”, assim chamado, por excelente cortador de voleibol.

 

Ao citar Marco, o “Mãozinha”, desejo abrir um parêntese necessário para falar de seu pai, Cláudio Barreto, um adulto possuidor de um terno coração de criança. De Cláudio, merece ser repetido, agora e aqui, com ênfase memorial, muito de sua vida, afinal fora um técnico brilhante, que não se exaurira como Engenheiro Eletricista destacado da Energipe, hoje Energisa. Foi muito além, notabilizando-se sobremodo, como um cidadão exemplar, pai e esposo amoroso. Cláudio, que nos deixou tão cedo, marcou-se com uma lembrança carinhosa de homem persistente na sua mística religiosa, exemplo de dedicação e perseverança como cidadão e defensor da Igreja, mãe e mestra de sua fé. Um exemplo notável que deixou muitas saudades; a Maria Viana sua bem amada esposa (minha professora de Química Analítica, filha da também Professora Cândida Viana (a bastante querida Professora Candoca), de suave memória) e filhos, os que mais partilharam de sua presença como bênção, e a uma vasta circundância de amigos, colegas e admiradores.

 

Fechado o parêntese necessário, devo dizer que outros meninos não foram citados ainda. Há sempre uma falha nas lembranças dos velhos. As preocupações e os afazeres da vida nos fazem superficiais nas nossas apreciações. Ademais, os meninos crescem, tornam-se homens, perdem parte da alegria e da inocência de crianças e não se fazem conhecer quando não são reconhecidos nas dimensões alcançadas. E assim muita omissão pode ter acontecido neste relato, necessitando um acréscimo de comentários de lembranças. Daí porque seria interessante que outros o completassem enriquecendo-o com novos fatos e versões.

 

Direi, porém, em compondo a ambiência como cenário que a rua foi sofrendo algumas modificações no casario, personagens e em sua edificação.

 

Quando eu ali cheguei a três de fevereiro de 1973, habitando a casa 186 por mim adquirida, eu não possuía televisão, chuveiro elétrico, ar condicionado e outros confortos. E enquanto os meninos não chegavam, resolvi dar utilidade ao vasto quintal da residência.

 

Talvez, atendendo a uma modinha recorrente, decidi criar galinhas. Resolvi também fazer uma horta para consumo doméstico e como a rua era escura construí também um observatório astronômico.

 

A execução do galinheiro foi fácil, e sem mistérios. Com caibros, ripas e algumas folhas de zinco, Tereza e eu erguemos um confortável galinheiro. Digo confortável, porque era amplo e higiênico, com sombra suficiente e uma vasta área a céu aberto. Depois adquirimos comedouros e bebedouros, um conjunto de equipamentos, e alguma improvisação tosca, afinal me agrada sobremodo estudar a tecnologia de outrem para recriá-la segundo o meu contexto de economia e praticidade.

 

Foi também desta maneira, segundo os critérios de simplicidade e economia que iniciei o meu observatório astronômico, que bem me serviu enquanto durou. Naquele tempo não era fácil importar lunetas e telescópios. O preço era proibitivo, inclusive. A Universidade Federal de Sergipe, onde eu lecionava Física, como Professor Auxiliar de meu Mestre Leônidas Tancu, possuía um vasto laboratório de Física. Mas ali não existia uma luneta, um instrumento de observação à distância.

 

Por outro lado, no processo de formação do Bacharel, e do Licenciado em Física, é necessário habilitar o graduado com um cabedal de conhecimento de modo a permitir-lhe realizar experiências laboratoriais mediante materiais disponíveis de uso comum e corriqueiro; algo como uma balança com canudo de refresco e alfinete, um disco de compensado formando um estroboscópio, uma lâmina para o estudo da elasticidade, alguns dinamômetros de mola, e outras experiências mais sofisticadas de eletricidade e magnetismo percorrendo os caminhos originais de Edson, Tesla e tantos outros, sem falar dos mais antigos Ticho Brahe, Kepler, Galileu e Newton, utilizando não um instrumental sofisticado, mas algo compatível com a criatividade do próprio alunado.

 

E neste contexto, é muito fácil construir uma luneta de Galileu; basta-nos toscamente um tubo e duas lentes. Já o telescópio com espelho refletor é bem mais complicado, sobretudo a confecção de um espelho curvilíneo sem maiores imperfeições.

 

No caso da luneta por refração, por exemplo, podemos construí-la com duas lentes, ocular e objetiva, ambas convergentes, caso da luneta astronômica em que a imagem é bastante ampliada, mas aparece invertida, ou então com uma lente ocular divergente e uma objetiva convergente, quando a imagem observada é virtual e sem inversão.

 

Em ambos os casos não há segredo; uma das lentes, a objetiva, deve possuir uma superfície de refração grande, de modo a permitir a entrada no tubo de uma grande quantidade de luz do objeto analisado, possuir um pequeno encurvamento, e consquentemente uma distância focal elevada, de alguns metros, por exemplo.

 

Quanto ao dióptro ocular, sua distância focal deve ser pequena, alguns centímetros, ou menos, por exemplo. As duas lentes devem ser colocadas de modo a que seus centros ópticos estejam alinhados e o foco de uma coincida espacialmente com o foco da outra. Neste caso são reduzidas as deformações geométricas ou cromáticas; um trabalho minucioso de paciência, quando o material é improvisado e singelo.

 

No meu caso particular, uma ótica local confeccionou a meu pedido algumas lentes. Uma dessas lentes era uma objetiva com um diâmetro de quatro polegadas e uma distância focal de 2 metros, e foi por mim acoplada à extremidade de um tubo de PVC, desses tubos utilizados em esgotamento pluvial.  

 

Esta objetiva fazia par com uma ocular, bem mais difícil de construir com o maquinário daquele tempo, pois possuía uma distância focal de cinco centímetros, necessitando, portanto, desbastar o vidro em demasia.

 

A lente ocular foi inserida numa luva de 1,5 polegadas num tubo de PVC de mesmo diâmetro, rosqueado em toda extensão, permitindo que a focalização fosse realizada girando, um tubo se inserindo no outro de 4 polegadas, coaxialmente.

 

Como experiência, a luneta me foi satisfatória, sendo utilizada por alguns alunos que me visitavam em noites enluaradas, oportunidade em que viam minhas agruras com o galinheiro e experimentavam um pouco as picadas de muriçoca.

 

A maior dificuldade era o transporte da luneta e a sua colocação no suporte, dada às dimensões. Dificuldades análogas às de um virtuose de tuba, órgão, ou piano; carregar nas costas o instrumento.

 

Mas, se a luneta foi um feito interessante, sem insucesso ou traumas, minha criação de galinha foi um desastre.

 

No princípio, o criatório foi uma beleza. Tereza e eu compramos cem pintos, para iniciar, todos amarelinhos, um verdadeiro brinquedo de criança. Um aquecedor elétrico feito com lâmpadas incandescentes tornava tépido o habitat do aviário. Os pintos foram crescendo. Chegou o período de vacinação. Alguns tipos de vacinas eram aplicadas por diluição na própria água de beber, outras era preciso arranhar a pele do pinto e cobrir o ferimento com uma pincelada da vacina.

 

E os pintos aumentavam dia-a-dia, comendo cada vez mais muitos sacos de ração, mas sem doença, nem maiores dificuldades.

 

De repente, eis que chegam maio e junho, e com eles uma grande precipitação de chuva alagou o meu quintal. E só aí eu vim saber que o meu quintal alagava feio!

 

O aterro encontrado no verão, que nos parecia tão confiável, era insuficiente no inverno. E os pintos, coitados! Frangos e galinhas eram os maiores sofredores da imprevidência do avicultor em perspectiva!

 

Que fazer para salvar os galetos, com os pés imersos na água se enrugando? O jeito foi solta-los, deixa-los avançar nas áreas calçadas da garagem lateral, o carro dormindo na rampa de entrada da casa, ao desabrigo.

 

Ficou difícil manter os pintos, agora galos e galinhas a cacarejar e sujar tudo, comendo sem fastio e parando de crescer.

 

Um pinto daquela raça, destinada ao corte, com mais de três meses pára de crescer, mas não pára de comer. É hora do aviário virar só um tema culinário.

 

E foi então que a experiência me ficou mais traumática: Tereza não queria comer os frangos porque tinha pena dos bichinhos, e minha veia comercial já se revelava inútil e sem igual. Comecei a me desfazer dos galináceos, dando alguns por presentes à vizinhança ou à família.

 

Finalmente consegui acabar com tudo, vendendo o restante por atacado no mercado; serviu-me uma cozinheira, meio eufórica e fantasiosa, que bancou a vendedora.

 

Se não houve lucro, o prejuízo nunca existe para os que não são movidos a dinheiro e encaram tais fatos como uma experiência de rara felicidade. A vida nos é plena dessas lembranças.

 

E a Rua Laura Fontes me é cheia de saudades como estas; só minha e de Tereza. Por este tempo nossos filhos ainda não haviam nascido. Eu tinha um quintal grande, ensolarado, fiz uma horta, um galinheiro e um tosco observatório astronômico, alguns brinquedos de menino também; no caso o menino era eu mesmo, brincando com a minha casa, e com Tereza, a mulher só minha.

 

Da horta, comemos farta leguminosa de adubagem natural. Do galinheiro um prejuízo empresarial. Do observatório, uma distração noturna de boas lembranças.

 

Depois os dinheiros ficaram menos curtos, com as dívidas iniciais sempre resgatadas no prazo. O tempo nos traria o chuveiro elétrico, um televisor Philips, preto e branco de 17 polegadas, depois seria a vez dos meninos, e com eles muitas estórias para contar.

 

Falar das mudanças do casario vizinho, da reforma da nossa casa, do calçamento da rua, da construção da piscina, o melhor uso do quintal.

 

Relembrar os festejos de São João, em pipocos de bombonas, fogos de vista, de muitas fogueiras e churrascadas na porta, entremeados de guerras de cobrinha, de pitu e de espada.

 

Falar dos jogos de futebol na quadra da Praça da Imprensa, das exibições de filmes Super 8 na nossa casa, onde Daniela ficava na bilheteria cobrando ingresso, e dos banhos e campeonatos da nossa piscina.

 

Dizer, por mais importante que tudo, dos estudos recorrentes e nunca ausentes; dos meus filhos e dos não meus, e daqueles que por um tempo se fizeram meus, porque foram muitos os que se abrigaram nas nossas asas, para a vitória de todos os concursos, e o preparo para a vida. Muitos assuntos ainda para falar.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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