Um retrato que se apaga.

A fotografia é antiga, ali estou adolescente em miniatura do quadro de formandos de 1962 do Colégio Jackson de Figueiredo.

Outra cópia talvez não mais exista. Sobrou a minha, relíquia de importância só minha, que a conservo numa pequena moldura a acompanhar-me nos cenários do existir.

A recordação, fala o poeta que tanto rumino em repetição obsessiva, é uma traição à natureza, porque o que foi não é nada.

Mas; é! Grita dentro de mim, uma rejeição de quem se vê no extinguir dos cenários esmaecidos e desbotados, que se ainda não se extinguiram, totalmente, continuam se afastando na dispersão das luzes ao ceder à evolução entrópica das expansões inexoráveis.

E o quadro, como a passagem marcada pela pegada do animal e do poeta, mostra a indiferença de uma importância decadente; descaimento terrível, mas necessário, para que o ciclo humano se renove, em missão de superação e substituição.

Somos todos filhos da terra. E como filhos da terra, a permanência só se faz no tempo e no espaço nos frutos fruídos e nas sementes vingadas.

No mais, tudo é memória de uma vã história, onde o triunfo é breve, em sorrisos inscientes, insolventes e passageiros, e a derrota bem mais longa e dorida, vira afinação indispensável, polimento imprescindível e rotineiro, que a pedagogia da vida não define melhor didática, sobrando às horas perdidas, mal ou bem vividas, em meio a tantas pausas mal vencidas.

E o tempo passa, e o tempo voa, servindo até como mote bobo para um comercial de usura: “o tempo passa, o tempo voa, e a poupança Bamerindus continua numa boa”.

E neste voar do tempo, tão debochado quanto mal esboçado e equivocado, nem o Bamerindus restou na mesma boa.

“Boa” que não é a boa do passar do tempo, porque tal passagem traz consigo uma perda, ensejando saudade, pelo menos.

E não ver um pouco assim, é ceder-se ao alucinógeno que estimula a indiferença e amortece a lembrança, para ensoberbecer o presente em demasia, sobretudo quando estimula um esforço apressado, visando precipitar a realização do futuro que ainda se faz remoto e incerto.

Neste particular, nesta garimpagem excessiva de bens a conquistar, pose maior de formiga que abelha, enterrando esforços sem adocicar a vida, mais feliz é o homem que se encanta com a beleza do existir; e prosseguir, procurando alongar os seus contornos, vivendo na vida dos outros.

E assim a contemplação de um retrato antigo é motivo para recordação e saudade, sobremodo quando por mutabilidade implacável da vida, a paisagem se modifica, os personagens abandonam a ribalta, os figurantes esvaziam o proscênio e a luz é apagada por conclusão do espetáculo.

É neste contexto que estou a ver o meu colega de ginásio, concludente de 1962, Valfredo Tavares dos Santos, o nosso querido “gaguinho”, de tantas lembranças, que nos deixou domingo, 21 de agosto, após uma longa enfermidade, atingido por um violento acidente vascular cerebral.

Na foto do Jackson Figueiredo, Valfredo é o penúltimo, por ordem alfabética.

Quadro dos formandos do Ginásio Jackson de Figueiredo de 1962.

Pela fotografia do quadro de concludentes, o Jackson formara 122 ginasianos; 67 moças e 55 rapazes.

Na verdade esse número fora bem maior, porque nas minhas lembranças persistem outros nomes que ali não se encontram, quer porque não participaram da formatura, ou porque não entraram no quadro.

Nas minhas lembranças não recordo nenhum nome das moças, afinal eu sempre pertencera às turmas masculinas, nas quais estudavam predominantemente os alunos internos: os mais vibrantes e destemidos, direi assim; os menos acomodados ou os não bem comportados, dirão outros.

Nos quatro anos que ali passei, existiam três turmas; a turma A, exclusivamente masculina, onde ficavam os alunos internos, a turma B, exclusivamente feminina e a turma C que era mista e sempre estudava numa casa anexa ao colégio, que por afastamento chamávamos de Coréia.

Por ter pertencido a uma turma masculina, não lembro qualquer nome de minhas colegas do sexo feminino, afinal o contato era muito pouco, com intervalos de recreio separados.

Ampliação do Quadro de Formandos de 1962

Assim, tentando rebuscar na memória reconheço na fotografia dos formandos os seguintes colegas: Airton Cardoso Moura, Alex Lima Leão (das Alagoas), Antônio, outro Antônio, Antônio da Fonseca Dória (Toninho), Antônio Fernando Andrade Prado, Antônio Brito, Arnaldo Aguiar Machado, Carlos Alberto Góes, Carlos Augusto Fiel, Carlos Henrique Carvalho (filho de Zé Cumbira), Carlos Roberto (sobrinho da Profª. Berenice?), Carlos Roberto, Carlos (?), Eliel da Silva Ferreira (das Alagoas), Euler Mendonça Monteiro, Evandro, Francisco Geraldo de Santana (economista recentemente falecido), Geraldo Cardoso, Hercílio Silva Filho, Hermelino Menezes, José Alberto Ferreira (?), José Antônio (?), José Carlos (?), José Alberto Cerqueira, José Alves do Carmo, José Calumbi Filho, José Carlos Oliveira (Sardão), José Milton Tourinho, José Pedro, José Roberto Oliveira, José Romildo, José Paes de Santana, Murilo Correia, Manoel Augusto de Melo Diniz, Marcondes Ramos Dantas, os irmãos Martim Evert e Mauro Edilberto Gonzáles Hermida (da Bahia), Murilo Cabral Tavares, Nivaldo Cravo de Brito, Odilon Cabral Machado, Paulo (de Itabaiana), Paulo Roberto Ferreira de Santana (?), Pedro Luiz Matos Moura, Robson (Bobinho?), Ricardo de Magalhães Pontes (das Alagoas), Roberto (?), Roberto Nascimento Vieira, Roger Silveira Queiroz, Teobaldo Carvalho, Umberto (?), Valdemar Oliveira (?) das Alagoas, Valfredo Tavares dos Santos e Walter Marsena de Santana

Constato ainda a falta de alguns nomes na foto: Antônio da Fonseca Filho, os irmãos Jaconias e João Pinto do Lagarto, Haroldo, um gigante, Osman Silva Andrade, outro gigante, José Antônio Santos, José Carlos da Rua de Santa Luzia, próximo à Catedral, Luiz Santos de Boquim, e outros que por certo não se formaram conosco, como José Vilson dos Anjos, Geraldo Magela Nabuco de Menezes, Luiz Fernando Passos de Macedo, Francisco de Araújo Macedo Filho, (Macedinho), Roberto Paixão, e outros a perquirir.

Como já disse, estudei no Jackson de 1959 a 1962. No primeiro ano a sala de aula homenageava com uma fotografia a Jackson de Figueiredo, o patrono do colégio.

Se o Colégio possuía dois blocos, ou duas construções geminadas, esta sala se situava na parte mais antiga, logo na entrada do escola.

A rigor, e se fosse menor, esta sala deveria servir de ante-sala da Diretoria, onde dava expediente a Professora Judite Oliveira, com sua voz enérgica, em timbre altivo, nada brando, a ensejar temor e respeito.

Sua autoridade mantida não só no grito, era bem melhor exercida na pancada. Qual mãe severa, Dona Judite não titubeava em vergastar uma régua de madeira no lombo dos recalcitrantes indisciplinados, lição publicamente ministrada, até para produzir respeito à assistência dos alunos menores do 1º ano, com eu, que contemplava tudo isso, temerosamente.

É bom lembrar, que naquele tempo, por absoluta des-razão pedagógica, os pais recomendavam aos mestres, como Benedito e Judite, que batessem e castigassem seus filhos se assim o necessitassem, sobretudo os alunos internos.

Mas, em testemunho ocular destes castigos físicos, não se poderá dizer que havia exagero ou crueldade; Dona Judite dava as suas reguadas, é verdade, e o Prof. Benedito os seus famosos tapas nas costas também, mas o casal não suscitava ódios nem rancores.

Compreendia-se menos, embora fosse aceito em relutância, que o interesse do casal educador era apenas a ordem, a disciplina, o civismo e a responsabilidade, e assim eram justificáveis tais excessos, inclusive as preleções diárias de Dona Judite, ao abrigo do casquete, em pleno pátio sol a pino, a todo princípio de tarde.

Se no primeiro ano estudei no salão defronte à Diretoria, no segundo fiquei no Salão Artur Fortes, no andar superior do prédio, tendo Francisco Geraldo, Murilo Tavares, Geraldo Magela e Macedinho no meu entorno.

No terceiro ano, o salão era Duque de Caxias, geminado ao quarto onde repousava Dona Judite, no seu descanso de pós-almoço. Nenhum aluno podia fazer qualquer barulho das 13 às 15 horas, período sacrossanto da sesta da Diretora, com o Bedel Augusto distribuindo olhares fulminantes em promessas de castigos; prisões e reclusões.

Neste 3º ano divido uma carteira com Valfredo Tavares, o falecido desta semana que deixa em mim uma suave lembrança, pela simplicidade e alegria como via a vida, sem se apequenar ou se intimidar, mesmo exibindo uma gagueira que jamais o abandonou, nem lhe tolheu o sucesso na profissão e na vida.

Neste tempo, Valfredo era aluno interno vindo de Itabaiana. Tinha os polegares dos pés continuamente inflamados, num unheiro interminável que o impedia de usar sapatos. Freqüentava as aulas de alpercatas, e segundo versão dele, eu dizia que a ferida inflamada, em tons amarelo-alaranjados, não exibia bom cheiro, sendo chamariz de moscas que ali pousavam como helicópteros ou discos voadores dos anos 1960, ano que o mundo iria acabar.

Neste tempo, meu bom amigo Valfredo comungava das idéias separatistas de Itabaiana como um país independente, que a exemplo do Vaticano, o político Euclides Paes Mendonça pensou em transformar, por exclusiva derrota eleitoral.

Dividimos ainda outro banco escolar no quarto ano, na sala Duque de Caxias. Neste tempo o unheiro já não mais existia e Valfredo tinha vindo morar em Aracaju, numa casa vizinha ao Cinema Rex, em frente à Sorveteria Cinelândia, hoje não mais existindo nem a casa, nem a sorveteria, e o cinema virou Banco do Nordeste, tudo ali no primeiro trecho da Rua de Itabaianinha.

A formatura no Jackson de Figueiredo nos separou. Jamais estudamos novamente juntos. Contemporâneos talvez o fossemos em algumas aulas, em passagem fugaz no Curso Pré-vestibular de Marcos Pinheiro, grande mestre falecido.

Depois eu ingressei na Escola de Química, Valfredo cursaria medicina, vindo a fazer grande amizade com Garcia Moreno, e terminando vitorioso médico urologista, especialidade de Costa Pinto.

Curiosamente, Valfredo tinha o seu consultório na Praça da Catedral, justamente onde se situava a nossa Coréia, edificação por ele adquirida ao casal Benedito e Judite Oliveira, quando da venda do Jackson de Figueiredo. Foi neste consultório que Valfredo me socorreu em presteza e eficiência numa crise dolorosa de areia nos rins.

Pelo que sei, Valfredo teve muitos amores. Dono de um Volkswagen Karmann Ghia e bem jovem ainda, era comum vê-lo exibindo sucessivas namoradas, geralmente mulheres bonitas, evidenciando que a sua gagueira não lhe ensejava timidez.

Desses namoros derivaram alguns relacionamentos, seis filhos, segundo um deles que vim a conhecer no velório.

Pelo que sei também, Valfredo, nunca deixou de ser um bom pai. Sua índole era bondosa, sem maldades. Virara um médico vitorioso, adquirindo um edifício, O Hotel Trópicos, antigo Restaurante Bossa Nova, para erigir o Hospital do Rim, onde atendia até ao esgotamento dos próprios limites físicos.

Por conta desse excesso de trabalho, os nossos contatos se fizeram esparsos, uma alegria renovada quando nos encontrávamos; quer fosse num passeio de barco, num teatro em São Paulo, ou ainda na espera de uma oficina de lanternagem e pintura de automóvel.

Assim era Valfredo Tavares dos Santos, um bom colega que se faz hoje só memória, irmão de Maria José, falecida esposa do meu amigo José Carlos Machado.

Com o seu falecimento, fui ao OSAF. Uma multidão de clientes e amigos aguardava o translado do féretro para o Cemitério Colina da Saudade que se deu em cortejo presidido por viatura do Corpo de Bombeiros.

Era Valfredo revelando mais uma sua faceta, agora como Coronel reformado dos Bombeiros, coisa que pouca gente o sabia

E assim a minha saudade se volta para o retrato antigo, contemplando aqueles olhares de orgulho frente ao porvir que já começa a se exaurir.

Que Deus anime o nosso prosseguir.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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