A história sem fio em tempos de Google

Anita Lucchesi

Doutora em História pela Universidade de Luxemburgo/Centro para História Contemporânea e Digital.

anita.lucchesi@gmail.com

Relatividade, de M.C. Escher (1953). Disponível em: https://arteeartistas.com.br/biografia-de-maurits-cornelis-escher/

 

Estamos projetados contra as grades de segurança de nossa vagoneta. No loop da montanha-russa. Sangue bombeando forte na cabeça, vento forte e implacável obrigando os olhos abertos a lutarem para se fechar e os que estão fechados lutarem para se abrir. À nossa volta, mesmo para os olhos abertos, há pouco mais que um borrão para se discernir alguma coisa. A aceleração do conjunto parece nos abstrair do próprio tempo. Irresistivelmente, nos abandonamos à sorte dos espaços e dos tempos novos, aos quais, cada vez mais rapidamente, somos impelidos. É mais ou menos assim que o historiador Nicolau Sevcenko (1952-2014) nos apresenta o mundo atravessado pelas velozes transformações desde a Revolução da Microeletrônica, na corrida para o século XXI.

Por sua vez, as questões que atribulam os historiadores na “Era Google”, expressão utilizada pelo também historiador italiano Carlo Ginzburg (1939) ao tratar da relação entre Internet e História no século XXI, estão inextricavelmente ligadas ao mesmo contexto em que se experimenta a sensação de “aceleração do tempo”. Não podemos deixar de considerar que o advento da Internet contribuiu significativamente para as modificações na relação do homem com as informações, o tempo e o espaço. As novas tecnologias de informação e comunicação que vemos se desdobrarem no tempo presente alteram radicalmente a organização espaço-temporal da vida social, o que, portanto, toca diretamente nas matérias com que lida o historiador em seu ofício.

Vivemos uma intensificação das mudanças experimentadas na globalização, cuja imagem evocada muitas vezes era de um globo terrestre redimensionado, reduzido. A analogia é válida, pois o problema que temos diante de nós também diz respeito a uma nova compreensão do espaço, um novo espaço público de sociabilidade, que podemos chamar de ciberespaço. E o ciberespaço é, antes de todo o resto, espaço. Espaço para tudo o que descreve o filósofo francês Pierre Lévy (1956), mas também espaço enquanto ambiente (ainda que digital), lugar de registro de experiências novas, terreno em que se deixam os traços do tráfego digital, suporte de memórias. Poderíamos pensar em estabelecer fronteiras para o espaço e o ciberespaço, mas as práticas atuais de nossa sociedade, até mesmo no modo de falar da geração atual, nos advertem que essa é mais uma fronteira flexível da contemporaneidade.

Os jovens de hoje não dizem mais como as gerações precedentes “entrar na internet”. Entrar e sair do ciberespaço não é mais concebível, pois ele se estende para além do momento em que estamos conectados. O simples gesto de ligar o computador ou celular é já estar lá, mas, mesmo quando o aparelho está desligado, nós não deixamos de existir no ciberespaço. Haveria, então, uma continuidade entre espaço e ciberespaço que praticamente nos desobrigaria de usar o prefixo “ciber”, pois o simples fato de ele compor uma palavra não infere a ela uma dimensão unicamente virtual.

A história sem fio da nossa “Era Google” ainda enfrentará muitos desafios e questionamentos. Dissemos “sem fio”, por um lado, por percebermos que a possibilidade dos deslocamentos humanos atuais – reais/analógicos e cibernéticos/virtuais simultaneamente – se dá graças às novas Tecnologias de Informação e Comunicação, que permitem uma nova noção de espacialidade, em que nem mesmo estar conectado a um aparelho eletrônico fixo ligado a fios é necessário para circular no ciberespaço.

É certo: a História, como as demais ciências humanas, não pode fechar os olhos ou observar tudo isso passivamente. Entretanto, diante das constantes transformações, não há uma impossibilidade de reflexão e crítica. Mas também não há como negar que os historiadores ainda não encontraram o fio da meada. Graças à fluidez dos dados na Internet, documentos nascidos digitais ou digitalizados a partir de uma versão originalmente impressa não têm vida assegurada no ambiente digital. Isso muitas vezes faz com que referências a documentos disponíveis online se convertam, na realidade, em completa escuridão, como quando acedemos a um link referido em algum outro texto e, ao acessarmos, damos de cara com a frustrante frase Error 404: Page not found.

A nossa “história sem fio” ampliou, como nunca antes e depois de Gutenberg, as possibilidades de autoria. Um dos perigos do nosso tempo é, aliás, a produção de uma história sem historiadores, facilmente encontrada na Internet em vários sites diletantes, com narrativas amadoras e, em determinados casos, comprometidas ideologicamente. Essa nova forma de história que vemos se desenhar ainda está buscando o fio a seguir. É preciso, portanto, não temer o loop e enfrentar a gravidade enquanto estivermos de ponta-cabeça. Com algum esforço e paciência, há de se enxergar alguma forma, ou pelo menos silhueta, dessa história que está ficando para trás na paisagem borrada pela velocidade da nossa montanha-russa.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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