Diego Leonardo Santana Silva
Doutorando em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ)
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS)
Bolsista Capes
E-mail: diego@getempo.org
A busca do equilíbrio entre a vida pessoal e o mundo do trabalho é um dos desejos da contemporaneidade. Para muitas pessoas, a possibilidade de limitar questões que ocorrem em seus empregos apenas para a vida profissional permitiria aproveitar seu tempo fora do ambiente de trabalho de maneira mais saudável. E se fosse possível modificar o seu cérebro criando um novo “EU” que existisse apenas enquanto você está em seu emprego e, ao sair dele, a pessoa não lembrasse mais de nada? Esse é um dos princípios da série Ruptura (Severance), lançada pelo serviço de streaming Apple TV+ em 2022.
Dirigida por Ben Stiller e Aoife McArdle, Ruptura foi uma das séries mais aclamadas de 2022 e foi renovada para uma segunda temporada. Ela tem como núcleo principal trabalhadores de uma empresa chamada Lumen, que aceitaram realizar um procedimento no qual um chip foi instalado em seu cérebro e com isso eles não lembram do que acontece em seu trabalho. Isso faz com que os internos (versões dessas pessoas que trabalham na Lumen) passem a se questionar a razão de estarem ali e a vida que os externos (suas versões fora do trabalho) levam. Além, é claro, de como seria o mundo fora da empresa.
Todavia, o que parece ser uma boa ideia acaba demonstrando ser algo deveras problemático. Afinal, o que levaria uma megacorporação a realizar tal procedimento? Além disso, os internos não possuem direitos e, em caso de desobediência, acabam sofrendo punições severas que são autorizadas por suas versões externas. Passa a existir para os oprimidos internos uma concepção de que há um mundo lá fora onde eles poderiam ser eles mesmos sem o rigor e o controle que a Lumen faz no ambiente de trabalho. Desse modo, dentro da consciência do indivíduo, há uma contradição entre uma versão que quer esquecer o que ocorre no trabalho e outra que deseja saber sobre o mundo fora dele, fazendo essa pessoa desenvolver uma dupla personalidade.
Outro aspecto que a série problematiza é a relação do trabalhador com o seu serviço. Afinal, o que é produzido na Lumen? Isso, os empregados não sabem. Eles apenas cumprem funções enquanto são doutrinados para amar a empresa e incentivados a não construírem vínculos com seus colegas. Sem uma noção coletiva e moral do trabalho, os seres humanos executam suas tarefas como se fossem máquinas e perde-se a consciência de classe. Ao longo da história, vemos que aqueles que ocupam o mesmo espaço dentro da divisão do trabalho passam a ter objetivos em comum e, a partir disso, desenvolvem interesses em comum. Sem isso, fica difícil lutar contra a opressão que o trabalho pode impor.
Em uma época marcada pelo excesso de positividade e um estilo de vida cada vez mais estressante, a criação e a apropriação de mecanismos de fuga da realidade se tornam cada vez mais atraentes. O trabalho constitui um elemento da nossa identidade e um ambiente de referência em nosso cotidiano. A profissão de alguém faz parte daquilo que aquela pessoa é. Ao problematizar essa questão em um drama de ficção científica em um futuro distópico, Ruptura se torna uma produção atraente para os amantes do gênero e que tem uma grande capacidade de levantar questões e fazer o público pensar enquanto acompanha o desenrolar da história.
Para saber mais:
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 42ª ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2014.
Han, Byung-Chul. Do Desaparecimento dos Rituais: uma topologia do presente. Barcelona, Herder Editorial, 2020.
Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
HOBSBAWM, Eric J.; DE DECCA, Edgar Salvadori; HALL, Michael. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. Paz e terra, 2000.
THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987.