Produção das panelas de barro capixaba de Goiabeiras, em Vitória

É indiscutível que o ‘fazer’ de uma determinada arte é um agregador em potencial no ciclo do turismo. Quando o ‘fazer’ une-se ao ‘saber’, a arte deixa de ser um potencial para se configurar como um atrativo turístico que documenta quem faz, resguarda quem fez, delimita o espaço onde acontece essa arte e constrói história. Assim é a produção das panelas de barro de Goiabeiras, em Vitória, no Espírito Santos.

Em um galpão da área externa, a secular queima de panelas acontece ao ar livre e o sumo da árvore mangue vermelho dá o tom negro as panelas
Em um galpão da área externa, a secular queima de panelas acontece ao ar livre e o sumo da árvore mangue vermelho dá o tom negro as panelas

O oficio das paneleiras não se delimita somente ao bairro de Goiabeiras, porém há evidências que lá se mantém o fabrico raiz das tradicionais panelas capixabas derivadas dos indígenas Tupi-Guarani e Una, com divisão de processos distintos, a exemplo da retirada do barro de uma região específica; raspagem do excesso do barro com seixo retirado do rio, tingimento com o extrato da árvore de mangue vermelho e queima das panelas ao ar livre.

Das leves mãos de cerca de 120 famílias catalogadas em uma associação, o barro bruto se transforma em cerâmicas utilitárias certificadas por um selo de qualidade e territorialidade. Mas para chegar ao padrão de qualidade, o processo árduo é genuinamente manual: o barro é retirado do Vale do Mulembá; ao chegar a Goiabeiras o barro é pisado e separado em “bolas” com quantidades menores. Essas duas etapas são feitas exclusivamente por homens da comunidade. As paneleiras negociam a quantidade, para a partir de aí moldar ou como elas dizem “alissar” a argila em formatos específicos, como a moquequeira, a panela de arroz, o caldeirão, a assadeira da torta capixaba e as panelas de caldo.

As panelas de Goiabeiras têm selo de procedência e características próprias
As panelas de Goiabeiras têm selo de procedência e características próprias

Conta a poetisa Elisa Lucinda que todo o capixaba tem uma panela no coração. E assim define Pedro Paulo França, um dos comerciantes do galpão da Associação das Paneleiras de Goiabeiras. Filho de tradicional família de paneleiras, Pedro Paulo nasceu de uma história bem interessante intrinsicamente ligada ao oficio das paneleiras. A mãe dele, D. Tania Maria, conheceu o pai dele, Seu Aderbal, na negociação de panelas, quando Aderbal deixou um próspero comércio para negociar as panelas de barro. Do matrimônio dos dois nasceu mais uma geração que perpetua as raízes do fabrico das panelas deixadas por avós pescadores e bisavós.

Dona Jackeline e D Tânia

“Sei que é um trabalho árduo, mas a gente ver aqui uma cultura nascer do barro, uma história nascer. Às vezes as pessoas chegam aqui, procuram saber para que é a panela de barro, mas esquecem que ali tem história em todo o fabrico. Por traz, uma longa história, uma tradição, uma geração de renda. Isso aqui é essência, é vida, é entrega que a gente ver do barro bruto do Vale do Mulembá”, conta Pedro Paulo.

Pedro Paulo mantém a tradição das panelas e é filho de D. Tânia
Pedro Paulo mantém a tradição das panelas e é filho de D. Tânia

E se D. Tânia Maria Lucidato confirma essa história? Ela respondeu numa boa gaitada: “Conheci meu marido nas panelas de barro”. O saber fazer das panelas de Dona Tânia começou em família bem antes dela nascer. “Vem de muito longe. Comecei a fazer panela com oito anos de idade, com as minhas tias, tenho 52 anos de ofício de paneleira”, puxa as memórias afetivas.

São histórias por traz de cada traço da produção das panelas de barro de Goiabeiras, em Vitória. A cada molde feito, a torna única passando do suor de cada mão a história familiar que remota aos antepassados, que ali povoaram um braço de mangue, à beira do canal Goiabeiras.

D. Lucy Barbosa conhece o ofício faz pouco tempo
D. Lucy Barbosa conhece o ofício faz pouco tempo

Do árduo trabalho de retirar o barro sólido no bairro Joana d’Arc, no Vale do Mulembá, até chegar ao galpão, há inúmeras vivências. E dessa continuidade vai permanecendo viva toda uma tradição passada de gerações.

Dona Tânia aponta com orgulho o símbolo das Paneleiras de Goiabeiras gravado na parede do galpão, por ser a única no país registrada no Livro dos Saberes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), um símbolo da cultura capixaba, considerado patrimônio imaterial e com selo de procedência da Indicação Geográfica (IG).

A Indicação de Procedência confere às paneleiras de Goiabeiras a garantia de autenticidade e origem legítima para suas criações, protegendo o uso indevido do nome e da marca. Enquanto ela se orgulha de manter viva a tradição, um paneleiro retira o excesso do barro de uma panela já moldada à sua frente com um seixo retirado do mangue, mais uma tradição mantida.

Do outro lado, mais panelas são moldadas, uma delas por D. Lucy Barbosa Salles. Ela conta que para ela o ofício é novo após aprender há cinco anos a técnica em uma oficina ofertada pelo Sebrae, mas aprendeu rapidinho o valor que se tem quando sua arte ganha o mundo. “Recebemos muitos turistas aqui, até de outros países. Tem muita encomenda de longe, até pra Itália”, afirmou

Ester Gomes e Rodrigo Gomes, primos, uma nova geração nas Paneleiras de Goiabeiras
Ester Gomes e Rodrigo Gomes, primos, uma nova geração nas Paneleiras de Goiabeiras

Do lado de fora do galpão, a beira do canal, peças são expostas ao sol na área externa para secar por dois ou três dias. Ester Gomes, Rodrigo Gomes (sim, são primos) e Simone Siqueira, jovens que também perpetuam a tradição, parecem pular das paisagens retratadas por Franz Post, o pintor viajante holandês que bem documentou as paisagens do Brasil nos anos 1600.

Eles fazem parte de uma nova geração que sabem o valor das panelas para o país. Do lado esquerdo do galpão, mais paisagens que poderiam emoldurar um quadro com o Rodolfo Alves amaçando o barro com a força das pernas, mas de uma suavidade de quem conhece o oficio. De poucas palavras, Rodolfo conta que dos 55 anos, 40 estão ali na lida do barro.

No galpão ao lago, D. Jecilene Correia Fernandes, mãe de dois filhos que não querem a lida das panelas, conta sua história de vida enquanto ora chapiscava a panela com uma vassoura chamada de muxinga, untada com o líquido de tanino retirado da casca do mangue, ora levava a panela novamente para aquecer. “Gosto de levar duas vezes para a fogueira porque dar mais brilho”, argumenta seu saber fazer.

O barro bruto da região de Mulembá chega e é amassado por moradores, como Ronaldo
O barro bruto da região de Mulembá chega e é amassado por moradores, como Ronaldo

De panela em panela que ganha as cozinhas, restaurantes e salas de decoração do mundo, vai um pouco do suor, da garra, da força capixaba pelas mãos de Dona Tânia Maria, Pedro Paulo, Ester Gomes, Rodrigo Gomes, Simone Siqueira, D. Jecilene Correira, D. Lucy Barbosa; um pouco da força de Rodolfo Alves, alguns dos personagens dessa história. Vai a territorialidade do barro de Mulembá com a ancestralidade que emerge na região. O saber fazer está aí para documentar a produção das panelas de barro de Goiabeiras, em Vitória, e continuar a fazer história.

D. Jecilene Correia queima e dá a cor as panelas. Dois filhos não quiseram continuar o ofício

D. Jecilene queima e dá a cor as panelas. Dois filhos não quiseram continuar o ofício

Na Bagagem

O galpão da Associação das Paneleiras de Goiabeiras funciona à rua das Paneleiras, nº 55, Vitória, de segunda a sábado, das 8h às 17, e aos domingos, das 9h às 15h.

As paneleiras aceitam encomendas e enviam para todo o Brasil. Contatos: Pedro Paulo (27 – 99695-9393), Tania Maria Lucidato (27 99943-6025) e Lucy Barbosa Salles (27 997235772).

Lembre-se que as paneleiras de Goiabeiras possuem um selo de qualidade e indicação de procedência. Os valores variam de R$ 10, os copos de caldos, até R$ 220, as panelas maiores para 15 pessoas. Há também uma diversidade em vista com a chegada do turismo, a exemplo de imã de geladeira e outros itens.

É verdade que ao cozinhar pela primeira vez, é recomendado lavar normalmente, utilizar duas colheres de óleo para untar por 15 minutos. Pode-se também deixar esquentar passar o óleo para selar bem a panela. Fotos: Silvio Oliveira  – Siga nossas redes sociais 

Leia também:

Afro tour e a presença negra em Porto Alegre

 

Comentários

Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nosso portal. Ao clicar em concordar, você estará de acordo com o uso conforme descrito em nossa Política de Privacidade. Concordar Leia mais