Processo estrutural: necessidade de regulação legislativa do método

Na última semana, o Supremo Tribunal Federal homologou um acordo de grandes proporções e notável relevância social no âmbito da ADPF 1236, proposta pelo Presidente da República. O pacto, celebrado entre a União, o INSS, o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, viabiliza a devolução integral e imediata dos valores indevidamente descontados de benefícios previdenciários, em razão de atos fraudulentos e destinados a entidades associativas. O ressarcimento ocorrerá diretamente na folha de pagamento, por via administrativa. Trata-se de uma solução célere, efetiva e socialmente justa, valendo o registro de que foi o próprio Advogado-Geral da União que, após o ajuizamento inicial, apresentou novo pedido de “instauração de incidente de solução negociada das controvérsias”, tendo em vista “a necessidade de resguardar a integridade dos interesses previdenciários de milhões de segurados”.

O desfecho, embora muito virtuoso em seus efeitos, exige uma análise cautelosa quanto ao método adotado (que, a essa altura, já está totalmente disseminado no âmbito do Supremo Tribunal Federal e se alastra rapidamente para o âmbito de outros tribunais). Afinal, o acordo foi firmado no contexto de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), uma ação de controle concentrado de constitucionalidade, cujos contornos procedimentais são estritamente definidos na Lei nº 9.882/1999, que não prevê a possibilidade de audiência de conciliação, tampouco de mediação ou transação. A conciliação homologada pelo STF, portanto, não encontra amparo expresso no ordenamento jurídico-processual vigente e é, sob a perspectiva técnica, um procedimento heterodoxo.

Esse episódio, emblemático por seu êxito e por sua atipicidade, insere-se em um fenômeno mais amplo que vem se consolidando na atuação do Supremo Tribunal Federal: a adoção do chamado processo estrutural. Trata-se de uma nova lógica de condução dos litígios constitucionais, voltada não apenas à resolução pontual de um conflito, mas à reconfiguração paulatina de estruturas normativas, institucionais ou administrativas que geram violações reiteradas a direitos fundamentais.

O processo estrutural não se limita à sentença tradicional. Ele pressupõe decisões progressivas, diálogo entre múltiplos atores, supervisão judicial contínua e, por vezes, a formulação de planos de ação conjuntos entre Judiciário, Executivo, sociedade civil e órgãos técnicos. Essa modalidade processual tem se revelado promissora diante da complexidade de demandas coletivas crônicas — como educação, saúde, sistema penitenciário, meio ambiente ou, como no caso em tela, fraudes estruturais no sistema previdenciário.

Não se pode negar os méritos dessa inovação. Em muitos casos, o processo estrutural se apresenta como a única via eficaz para a tutela concreta de direitos fundamentais, diante da inércia ou incapacidade crônica dos Poderes Legislativo e Executivo em enfrentar disfunções estruturais. É um instrumento de promoção da cidadania, de responsabilização institucional e de democratização do acesso à Justiça.

Entretanto, sua expansão acelerada e não regulamentada impõe desafios sérios à legitimidade democrática do processo constitucional. Ao promover soluções fora dos marcos estritamente previstos na legislação, ainda que justificadas por razões práticas ou humanitárias, o Judiciário amplia perigosamente sua margem de discricionariedade. Quando o método se torna difuso, os limites do poder se tornam imprecisos.

O processo estrutural, para ser legítimo, precisa ser regulado. Não basta a boa intenção, é preciso o respaldo normativo. A ausência de parâmetros legais específicos para sua utilização – como critérios objetivos de admissibilidade, procedimentos mínimos, instâncias de participação, formas de controle e prestação de contas – potencializa ainda mais espaço fértil para o ativismo judicial e a tomada de decisões de enorme impacto político e orçamentário por atores não eleitos e sem legitimidade democrática direta.

A criação, pelo próprio STF, do Núcleo de Processos Estruturais, representa um passo importante ao reconhecer a especificidade desse modelo processual e a necessidade de gestão dialógica e colaborativa. Mas a autorregulação interna do Judiciário não substitui a regulação legislativa. É o Parlamento, e não o Tribunal, que deve definir os contornos da atuação judicial estrutural, em respeito à separação de Poderes e à supremacia do processo democrático de deliberação.

Essa recente atuação do Supremo, portanto, ilustra de forma exemplar os dois lados da moeda: a eficácia social do processo estrutural, quando bem conduzido, e a fragilidade normativa de sua aplicação em um contexto de controle de constitucionalidade concentrado. A conciliação celebrada foi, sem dúvida, um ganho para os aposentados; mas não deve se tornar padrão de soluções processualmente improvisadas.

É chegada a hora de o Congresso Nacional assumir o protagonismo que lhe cabe nesse debate. É preciso legislar sobre os processos estruturais: delimitar suas hipóteses de cabimento, disciplinar suas fases procedimentais, assegurar a participação plural de atores sociais e estabelecer mecanismos claros de supervisão, avaliação e encerramento. Isso não significa engessar a atuação judicial, mas fortalecê-la com legitimidade e previsibilidade.

O processo estrutural pode e deve ser um aliado da democracia, desde que caminhe junto com ela, e não à sua revelia.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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