Já comentamos, aqui mesmo, neste espaço da Infonet, no final do ano de 2022, que a atuação das instituições em defesa da democracia deveria ser permanente e mais efetiva, como parecia já vir sendo esboçado, com a adoção de medidas proativas, incluindo a desafiadora luta para coibir a disseminação em massa de fake news antidemocráticas, bem como a organização e realização de atos antidemocráticos e golpistas que têm como instrumento as novas tecnologias de informação e comunicação (Vitória da democracia e sua defesa permanente e efetiva). Comentamos também, em fevereiro de 2023, que não imaginávamos a proporção que os acampamentos e movimentos antidemocráticos iriam atingir, muito menos a intentona golpista de 8 de janeiro de 2023, permeada de manifestações violentas, com depredação do patrimônio público, em nítida tentativa de golpe de Estado, com invasão dos prédios dos três Poderes (Intentona golpista, crimes contra a democracia e justiça de transição).
As investigações concluíram que houve preparação para o que se tentou naquela data, apogeu de um conjunto de atos voltados ao planejamento de ruptura institucional, o que caracterizou, em tese, a prática de diversos crimes e infrações. Isso levou o Procurador-Geral da República a propor ação penal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e diversas outras ex-autoridades civis e militares, por envolvimento em um articulado plano de ruptura institucional, cuja culminância se deu na tentativa de golpe de Estado e na violenta invasão das sedes dos três Poderes da República, no dia 8 de janeiro de 2023. Houve o recebimento da denúncia pelo Supremo Tribunal Federal, após cuidadosa análise prévia de sua admissibilidade, o que representou mais do que um ato processual: constituiu passo fundamental na afirmação do Estado Democrático de Direito, sinalizando que, em uma democracia constitucional, ninguém está isento de responsabilidade por atos golpistas contra a própria democracia.
Pois bem, uma vez recebida a denúncia, o processo seguiu em suas regulares etapas, com a realização de diversos atos processuais acompanhados atentamente pela sociedade, incluindo depoimentos dos réus e oitivas de testemunhas. O avanço da tramitação do processo, com possibilidades de conclusão neste segundo semestre, e as reações políticas mais diversas – incluindo as reações às medidas cautelares diversas da prisão determinadas contra o réu Jair Bolsonaro (destacando-se a imposição do uso de tornozeleira eletrônica) e, posteriormente, a própria determinação de sua prisão domiciliar devido ao descumprimento das primeiras medidas – demonstram que aquela vigilância ativa e permanente em defesa da democracia, que abre o presente texto, deve ser reforçada intensamente. A tentativa de golpe contra a democracia, contra as instituições democráticas e contra a nossa soberania está em andamento, contando com apoios internacionais do governo dos Estados Unidos, sob liderança de Donald Trump, e dos senhores feudais do tecnofeudalismo, as Big Techs.
Com efeito, são diversos os lances que nos permitem chegar a essa conclusão:
a) o anúncio e a concretização, pelo governo dos Estados Unidos, de um “tarifaço” incidente sobre diversos produtos brasileiros, sob alegações frágeis e equivocadas de déficit na balança comercial com o Brasil e de que o país vem perseguindo o ex-presidente Jair Bolsonaro com o processo em tramitação no STF. O pior desse movimento é a assumida articulação, visando a essa medida, por parte do deputado Eduardo Bolsonaro, que há mais de um mês está residindo naquele país com esse objetivo;
b) a ocupação, com força física e truculência, da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados por deputados do PL, que praticamente inviabilizaram o funcionamento normal daquela Casa Legislativa na semana passada, como ato político de protesto contra o Supremo Tribunal Federal e reivindicando a votação de proposições legislativas voltadas a viabilizar a anistia a Jair Bolsonaro;
c) a ordem executiva de proibição da entrada nos Estados Unidos do ministro Alexandre de Moraes, de parentes e de “seus aliados” no STF (todos os demais ministros, à exceção de Nunes Marques, André Mendonça e Luiz Fux), seguida da aplicação, pelo governo dos Estados Unidos, de sanções financeiras ao ministro Alexandre de Moraes, invocando a Lei Magnitsky — legislação daquele país voltada a violadores de direitos humanos e acusados de corrupção — e que pode também proibir entidades financeiras americanas de fazerem operações em dólares com uma pessoa sancionada, o que inclui bandeiras de cartões de crédito como Mastercard e Visa, por exemplo. Tudo sob o argumento de que Moraes usa sua autoridade de magistrado para impor ilegalmente detenções arbitrárias e censurar a liberdade de expressão. Tais medidas, que configuram tentativa de governo estrangeiro de interferir na soberania nacional e até mesmo na independência do Poder Judiciário brasileiro, contaram também, pasmem, com articulação publicamente anunciada e comemorada por Eduardo Bolsonaro e por todos os membros desse agrupamento político;
d) a tentativa da bancada do PL e de apoiadores do bolsonarismo de pautar e aprovar proposições legislativas que viabilizem a anistia a Jair Bolsonaro e/ou contribuam para que não sofra punição pelos crimes de que é acusado e até possam restabelecer sua elegibilidade (inelegível que está porque condenado pelo TSE por abuso de poder nas eleições de 2022), como a proposta de emenda à Constituição que retira a competência do STF para julgar ex-presidentes da República por crimes cometidos durante o exercício funcional;
e) a tentativa de setores do bolsonarismo de emplacar, no Senado Federal, o impeachment de Alexandre de Moraes como plano imediato e, como plano para 2026, conquistar ampla maioria do Senado Federal a partir das eleições gerais, com o declarado propósito de levar adiante o impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal;
f) uma intensa campanha contra o Supremo Tribunal Federal e os Tribunais Superiores em geral, apontando sistematicamente privilégios que já existem há bom tempo, como penduricalhos remuneratórios ou regalias como carros de luxo e serviços contratados de “salas VIPs” no aeroporto de Brasília — que podem e devem, sim, ser objeto de críticas e correções, por serem ostentações abusivas e indevidas, verdadeiros atentados à igualdade republicana — mas que, nesse contexto, são apontadas como parte de uma campanha maior de desmoralização e descrédito do STF, procurando deslegitimar socialmente eventual condenação de Jair Bolsonaro pelos crimes de que é acusado.
Como se percebe, o golpe contra a democracia não foi totalmente contido. Se é verdade que não se concretizou em 8 de janeiro de 2023, também é verdade que ele persiste, adaptado às circunstâncias e às oportunidades políticas, operando agora em múltiplas frentes — legislativa, midiática, judicial e internacional. O que se vê é uma estratégia de desgaste continuado, sustentada por redes de apoio internas e externas, que busca, a médio e longo prazo, corroer as bases institucionais e abrir caminho para uma revisão autoritária da ordem democrática.
Essa constatação impõe uma reflexão mais ampla: a defesa da democracia não se limita à neutralização de episódios pontuais de ruptura, por mais graves que sejam. Ela exige a compreensão de que a democracia é um processo vivo, frágil e permanentemente tensionado, cujo vigor depende tanto da firmeza institucional quanto do compromisso cívico da sociedade. É na vigilância cotidiana, na educação política, no fortalecimento das instituições e na recusa consciente às seduções do autoritarismo que se constrói a barreira mais sólida contra retrocessos.
O futuro da democracia brasileira, portanto, não será decidido apenas nas salas de julgamento ou nas votações do Congresso, mas também na arena pública, na capacidade de cada cidadão e cidadã de reconhecer os sinais do risco e de agir, com responsabilidade e discernimento, em defesa dos princípios que sustentam a liberdade, a justiça e a soberania nacional. Sem essa consciência coletiva, o esforço institucional corre o risco de ser insuficiente; com ela, nenhum projeto autoritário poderá prosperar.