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Cristielane ao sair do Cativeiro (Foto: Aldaci Souza) |
O cárcere privado ao qual foi submetida a jovem Cristielane Caetano Mota Santos, 21, reacende a polêmica sobre a aplicabilidade da Lei 11.340/2006, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar praticada contra a mulher no Brasil, um instrumento jurídico que ficou famoso como Lei Maria da Penha, assim denominada por força da resistência de uma cearense com esta identidade que, vítima desta modalidade criminosa, ficou paraplégica e enfrentou tribunais internacionais para denunciar e ver punido o ex-marido Marco Antônio Heredia Viveiros, um professor universitário autor das agressões.
É flagrante a elevada incidência de denúncias, que, embora registradas em Boletim de Ocorrência Policial, acabam perdendo força, cujos procedimentos de apuração, indiciamento e julgamento do autor caem no engavetamento, fruto do desânimo das vítimas em dar sequência ao processo judicial. Para se ter ideia, das denúncias que chegaram no primeiro trimestre deste ano ao Departamento de Atendimento a Grupos Vulneráveis (DAGV) relacionadas a agressões contra mulheres, apenas cerca de 26% são transformadas em inquérito policial, fruto, na maioria dos casos, de desistência da vítima a dar prosseguimento à ação judicial.
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Maria Teles admite falta de estrutura |
A delegada da Mulher Suirá Luiri da Silva Paim, do DAGV, admite a interrupção dos procedimentos como consequência da desistência da vítima. A delegada explica que, muitas vezes, vítima e agressor até preferem retornar a convivência, dificultando a continuidade do processo. No momento em que o Portal Infonet entrevistava a delegada Suirá Luiri, o DAGV registrava um destes “final feliz” entre vítima e agressor depois que a companheira desistiu do direito de prosseguir com a ação. “Hoje, estamos morando juntos, vivendo como um casal e, no nosso lar, só reina o amor e a paz”, revelou o homem, cuja identidade está preservada, à autoridade policial.
Mas há controvérsias quanto ao engavetamento dos procedimentos mediante a desistência da vítima. Para o desembargador Edson Ulisses de Melo, do Tribunal de Justiça de Sergipe, a violência doméstica praticada contra a mulher se constitui em delito de ação penal pública incondicionada. Ou seja, é garantida a tramitação regular da ação judicial, mesmo sem o consentimento da vítima. “Delegado não pode acolher pedido de desistência”, adverte o desembargador. Para Edson Ulisses, a desistência é fruto da fragilidade da vítima, que, na maioria das vezes, sofre pressão do agressor para tomar tal atitude.
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Edson Ulisses: ação penal incondicionada |
Há, inclusive, decisões do Supremo Tribunal Federal que abre precedentes neste sentido, mas a temática divide opiniões, embora ganhe simpatia nos movimentos sociais, em particular o feminista. A delegada Suirá Luiri, por exemplo, não vê vantagem nesta alternativa. “É uma faca de dois gumes tirar da esfera da vítima tal decisão e colocá-la para o Estado. É um retrocesso”, analisa a delegada. “É tratar a mulher como sujeito incapaz”, entende.
Ao olhar do movimento feminista, o pensamento do desembargador Edson Ulisses de Melo é o mais coerente. “O problema não está na lei, mas nos instrumentos de sua aplicabilidade”, enfatiza a educadora Inês dos Santos Souza, do Centro Feminista 8 de Março. “Faltam decisões mais urgentes e mais eficazes por parte das autoridades. Não é questão de boa ou má vontade, é a ineficácia do Estado para oferecer mecanismos para cumprir a lei e a morosidade destas decisões acaba desestimulando a vítima a dar prosseguimento à queixa”, diz. “Esta lentidão nas decisões no âmbito da Delegacia e da Justiça provoca mais riscos à vítima”, entende.
Diagnóstico
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Inês: "Morosidade incentiva violência" (Foto: Divulgação) |
Não há um diagnóstico preciso a respeito do comportamento da mulher quanto à opção pela renúncia ao processo, mas há quem compreenda que a resistência é consequência da dependência financeira da vítima. “A independência financeira da vítima certamente seria a melhor saída para que os processos tenham continuidade”, conceitua a delegada. E a desistência do processo é um dos fatores que contribuem com a reincidência, conforme análise da delegada.
Há uma sintonia, entre os movimentos sociais e as autoridades, no entendimento de que os empecilhos para que a vítima possa ter maior amparo do poder público é a falta de estrutura da própria rede de proteção. A Secretária de Estado de Políticas para Mulheres em Sergipe, Maria Teles, admite que ampliar e estruturar a rede de proteção é um dos seus maiores desafios. “O número de casos está aparecendo (não que esteja aumentando, conforme adverte, mas começando a ser revelado) e há um descompasso grande com a estrutura da rede de fortalecimento e apoio às vítimas”, observa.
Em Sergipe, por exemplo, há apenas uma Casa Abrigo, que ampara mulheres e filhos da reação violenta, prestando assistência integral. Além de insuficiente para atender a demanda, o tempo de permanência na Casa Abrigo é de apenas três meses. De acordo com levantamento da coordenadora da Casa Abrigo Núbia Marques, Magna Mendonça, estão alojadas naquele espaço cinco famílias, incluindo dez crianças. Todas ameaçadas de morte pelos respectivos companheiros.
A Casa Abrigo Núbia Marques fica em local não divulgado, é mantido pela Prefeitura de Aracaju em convênio com os programas sociais desenvolvidos com a parceria dos Governos Federal e Estadual e, além das vítimas e alguns servidores públicos, nenhum outro ser humano tem acesso. Uma maneira de manter a integridade física das mulheres e das crianças alvo da truculência dos respectivos ex-companheiros. Paralelamente a este atendimento, a equipe multidisciplinar que atua na Casa Abrigo realiza visitas domiciliares, atendendo 20 famílias que já passaram abrigadas no espaço Núbia Marques. Outras cinco tiveram que sair do Estado devido às ameaças dos ex-companheiros: duas delas estão em São Paulo, outras duas em Alagoas e uma outra em Salvador, amparadas por familiares.
Judiciário
Em Sergipe, a 11ª Vara Criminal é especialista no julgamento das ações judiciais relacionadas a mulheres vítimas de violência doméstica. A demanda é grande. O Portal Infonet tentou sucessivas vezes uma entrevista com a juíza Eliane Cardoso Costa Magalhães, mas não encontrou espaço na agenda da magistrada. Além de atendimento a mulheres vítimas deste tipo de violência, a 11ª Vara Criminal também julga outras ações que envolvem grupos vulneráveis.
Por e-mail, a juíza elogia a legislação, entendendo que a Lei Maria da Penha se caracteriza como “um mecanismo jurídico capaz de proteger a mulher contra a violência doméstica”. É grande o número de audiências diárias naquela Vara Criminal. Para se ter ideia, em apenas um dia nesta semana, estavam marcadas 37, só relacionadas à violência doméstica. Ao contrário do que argumentam vítimas e lideranças do movimento feminista, a juíza garante agilidade nos procedimentos judiciais. “Um dos aspectos em que se destaca a eficácia da referida lei é a rapidez em que, nesta vara especializada, são apreciadas as medidas protetivas e as representações de prisão preventiva”, diz.
“Esclareço que a referida lei, no seu artigo 18, prevê o prazo de 48 horas para apreciação da medida cautelar, contudo as mesmas são examinadas de pronto sem a necessidade de utilização deste prazo. É evidente que a violência existe e infelizmente continuará existindo mas ao menos, agora, quem a pratica será punido com maior rigor, o que serve como exemplo para agressores em potencial”, finaliza a juíza.
Por Cássia Santana
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