Infância: uma prioridade absolutamente esquecida

Prioridade absoluta para a infância: apenas sonho (Fotos: Cássia Santana/Portal Infonet)

Aos olhos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei que completa 23 anos em 13 de julho deste ano, a infância é uma prioridade absoluta e aquelas criaturas com idade inferior a 17 anos têm direitos assegurados à atenção integral. Mas a realidade choca e está muito longe daquilo que a Constituição Federal, de 1988, consagrou e que está preconizado no ECA.

As estatísticas permanecem falhas, as políticas públicas ainda são restritas e a incidência de violência contra este público é alarmante, assim como ainda predomina o medo à denúncia. “Temos uma das mais belas legislações, mas a nossa lei não é viva”, considera a pediatra Edda Machado Teixeira, gerente de internamento pediátrico do Hospital de Urgência de Sergipe (Huse).

Aqueles que deveriam proteger tornaram-se algozes. Em Sergipe ainda são observados casos de envolvimento de pais em estupro de vulneráveis, assim como há negligência com a saúde da criança. A pediatra Edda Machado, por exemplo, revela que ainda enfrenta casos desta natureza com frequencia, inclusive com pais que insistem em retirar a criança do leito hospitalar sem a devida alta média. “Pais não têm prerrogativa de forçar a alta médica”, adverte.

Edda Machado: grande incidência de negligência familiar

A violência sofrida na infância e na adolescência traz graves sequelas. E quando envolve estupro e abuso sexual, as consequências são ainda mais danosas. Para a psiquiatra Glaise Franco, especializada na Infância e Adolescência, nos casos deste tipo de violência, as vítimas sempre são acometidas por distúrbios mentais. Na ótica da especialista, nem todos os pacientes que têm distúrbios mentais sofreram violência sexual. No entanto, conforme frisou, independentemente da idade [seja criança, adolescente ou adulto], as pessoas vítimas de violência sexual sempre desencadeiam distúrbios mentais.

A psiquiatra lamenta a deficiência da rede de proteção. “Não há rede de proteção eficaz em nenhum nível. As pessoas não estão preparadas, é um tema que não é discutido”, comenta. “É necessário transformar a situação de indignação em ações de proteção ao menor. Só passa a ser questão de polícia quando os casos acontecem, são necessárias as medidas preventivas”, considera.

Graice Franco: violência sexual causa distúrbio mental

A deficiência acaba beneficiando os agressores, na opinião da psiquiatra. “Qualquer esgarçamento no tecido social favorece a ação daqueles que ganham com a violência sexual, assim como também favorece os pedófilos”, analisa.

Sem estatísticas precisas

O Portal Infonet identificou a pretensão da criação de uma rede de proteção, que integraria todas as políticas voltadas para a proteção à infância e pelo fim da impunidade daqueles que insistem em violar os sagrados direitos de crianças e adolescentes, com assistência integral às vítimas e familiares, sem também negligenciar com os agressores. Mas, na prática, efetivamente a rede ainda é uma incógnita e poucas ações funcionam. “A política destoa entre o discurso e a prática”, conceitua a advogada Glícia Salmeron, representante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). “O Estado sequer consegue um diagnóstico quanto à violência praticada contra crianças e adolescentes”, analisa.

Glícia Salmeron: Estado sem diagnóstico

E realmente não há ainda um órgão público ou uma entidade que concentre atenção nas estatísticas. Cada instituição faz a sua, isoladamente, sem critérios. E as vítimas? Geralmente elas recebem assistência psicossocial, mas logo são esquecidas, voltam aos lares e, muitas vezes, acabam residindo em locais onde os agressores continuam a exercer influência e têm fácil acesso.

Quanto à estatística, sabe-se que na 11ª Vara Criminal, que cuida da responsabilidade criminal das pessoas envolvidas em estupros e abuso sexual cometido contra crianças e adolescentes, tramitam 470 processos judiciais. “Em sua maioria, delitos de cunho sexual, cujas penas variam de dois a 30 anos de reclusão, a depender do tipo penal”, informa a juíza Eliane Cardoso Costa Magalhães, titular daquela Vara Criminal.

Em 2012, o Departamento de Atendimento a Grupos Vulneráveis (DAGV) da Secretaria de Estado da Segurança Pública instaurou 121 inquéritos policiais para investigar casos de violência e abuso sexual cometidos contra crianças e adolescentes. Neste ano, 18 já estão em tramitação. Um número considerado alto, porém longe do que é real. Suspeita-se que ainda há casos subnotificados, conforme admite a própria promotora Lilian Carvalho, que atua na 16ª Vara da Infância e Juventude.

Anneclay França: investigação de ato praticado por menores de 18 anos

O Sistema de Aviso Legal de Suspeita de Violência Contra Criança e Adolescente (Salve) controlado pelo Hospital de Urgência de Sergipe (Huse) registrou 760 casos, que envolvem violência física (22), maus tratos (20), 388 relacionados a negligência da família, outros 328 de variados tipos de violência e apenas dois de violência sexual contra este público, apesar dos indicadores sinalizarem para um número bem maior nesta tipificação criminal específica.

A juíza Eliane Magalhães observa que no ano de 2012 houve aumento considerável de denúncias e, em decorrência disso, os processos judiciais também aumentaram. E, para comprovar a deficiência do Salve, estão as estatísticas da Delegacia Especializada da Criança e Adolescência (DEPCA), onde foram instauradas dez investigações de ato infracional por estupro de vulnerável cometido por menores de 18 anos.

As vítimas, segundo observa a delegada Annecley França Figueiredo, geralmente têm idade inferior a 14 anos e os infratores, normalmente são mais velhos, mas com idade inferior a 18 anos. Os agressores, na maioria, são pessoas conhecidas das vítimas: primos, colegas de escola e até irmãos. Neste ano, já somam quatro procedimentos para investigar este tipo de violência contra crianças e adolescentes naquela Delegacia de Polícia. “O que chama mais atenção é que a maioria das vítimas é do sexo masculino”, revela a delegada.

Sem rede

Jaqueline Caldeira: mudança na estratégia para mobilizar sociedade

Todas as pessoas envolvidas no sistema de proteção comungam com a tese da deficiência da rede de proteção. “Na teoria, existem os Centros de Referência Especializados, mas, na prática, esse serviço não atende com presteza a demanda”, considera a juíza Eliane Magalhães, que reconhece o emprenho de profissionais, mas admite que o número é insuficiente para atender à crescente demanda. “Por conta dessa lacuna, a situação se refleteno âmbito do Poder Judiciário, uma vez que a clientela encaminhada retorna a esta Vara, buscando suporte para suas dificuldades que não são atendidas a contento”, observa a magistrada.

Nos 36 Centros de Referência Especializados (Creas) controlados pelo Governo do Estado por meio da Secretaria da Inclusão, Assistência e Desenvolvimento Social (Seides) há registros de 217 crianças e adolescentes vítimas de violência sexual no ano de 2012. As vítimas foram encaminhadas pelos Creas e receberam atendimento médico e psicossocial na Maternidade Nossa Senhora de Lourdes. Entre as vítimas, 117 são do sexo feminino e outras 40 do sexo masculino.

Caminhadas serão substituídas por ações mais efetivas (Foto: Arquivo Portal Infonet)

No final deste mês de março, a comunidade ganhará um grande serviço. Os exames comumente realizados em vítimas de violência sexual não mais serão realizados no Instituto Médico Legal (IML), segundo informou a psicóloga Jaqueline Caldeira, coordenadora do Núcleo de Projetos Intersetoriais da Seides.

Observando a falha na rede de proteção, a Seides também está modificando a atuação para comemorar o 23º aniversário do ECA neste ano e as ações que são realizadas tradicionalmente no mês de enfrentamento à violência contra crianças e adolescente – maio. Anteriormente, a mobilização se resumia a uma caminhada, numa espécie de grito de alerta para despertar a sociedade para a problemática.

Mas a tática será outra, neste ano, segundo informações da psicóloga Jaqueline Caldeira. “Vamos tentar ações efetivas”, diz. E um dos alvos está centrado nas estatísticas. “Vamos catalogar cinco comunidades com maior índice de abuso contra crianças e adolescentes para desenvolver ações mais específicas”, revela.

As comunidades com maior índice deste tipo de violência já foram identificadas pela Seides. São, conforme a psicóloga Jaqueline Caldeira, os municípios de Nossa Senhora do Socorro, Barra dos Coqueiros, São Cristovão e, em Aracaju, os bairros Industrial e Santa Maria. Nestes locais, no mês de enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes, serão realizadas visitas técnicas com divulgação de documentário e promoção de debates entre psicólogos, assistentes sociais e gestores da política de assistência com a comunidade. “Vamos fazer um mutirão para escutar a família e incentivar a denúncia”, diz a psicóloga. “Todas as sextas-feiras do mês de maio vamos fazer atividades em uma comunidade diferente”, revela.

O que fazer?

A promotora Lilian Carvalho, que admite a existência de grande subnotificação da violência contra crianças e adolescentes no Estado, considera a violência contra crianças e adolescentes como uma temática complexa, que deve envolver mecanismos de prevenção, repressão e de proteção. A promotora atua na 16ª Vara, uma das especializada na Infância e Juventude, onde são tratadas questões das medidas protetivas previstas no ECA. “Aqui há muitos casos de violência, que envolvem maus tratos e negligência e muitos pais perdem a guarda dos filhos por causa disso”, diz, observando para a dificuldade de encontrar estatísticas precisas. “As estatísticas são falhas, mas sabemos que 60% dos casos de violência são praticados por pessoas conhecidas das crianças”, comenta.

Nos casos de violência, qualquer cidadão pode fazer a denúncia ao Conselho Tutelar, à Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente, ao Ministério Público na Promotoria Especializada da Infância e Adolescência e, se preferir, até mesmo por telefone, pelo Disk Direitos Humanos, o Disk 100 -um serviço nacional coordenado pela Ouvidoria da Secretaria de DireitosHumanos da Presidência da República (SDH/PR), que recebe e encaminha as denúncias de violação de direitos humanos originadas de qualquer Estado brasileiro.

Por Cássia Santana

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