A águia do imperialismo abre as asas sobre nós

Um documento da embaixada dos Estados Unidos em Assunção, de 23 de março de 2009, vazado pelo site Wikileaks, previa que Fernando Lugo seria derrubado por meio de um golpe parlamentar – exatamente como aconteceu na sexta-feira 22 de junho de 2012, quando o presidente eleito do Paraguai foi substituído por seu vice Federico Franco. O memorando confidencial tem o seguinte teor:

“Rumores indicam que o general Lino Oviedo e o ex-presidente Nicanor Duarte estão trabalhando juntos para assumir o poder por meio de instrumentos (predominantemente) legais que deverão afetar o presidente Lugo nos próximos meses. O objetivo: capitalizar sobre qualquer tropeço de Lugo para iniciar o processo político no Congresso, impedir Lugo e assegurar sua supremacia política (…) A revolta relacionada a um programa de subsídios para agricultores por meio de ONGs foi considerada um pretexto para o impeachment antes que Lugo abandonasse o programa. Para um presidente que enfrenta muitos desafios – disputas políticas internas, corrupção e a percepção de que seu estilo de liderança é ineficiente – Lugo deve se preocupar para não cometer um erro, que seria seu último.”

Até agora, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, não se manifestou sobre o golpe de Estado no Paraguai. Quatro anos atrás, imaginava-se que a posse do cerebral Barack Obama, um presidente negro, filho de queniano, de origem pobre teria o condão de mudar a política imperialista dos Estados Unidos para a América Latina. Mas vê-se que, por uma questão de cacoete histórico, isso não aconteceu. Ainda mais que governos de esquerda tem se sucedido na região.

Suspender o criminoso embargo econômico a Cuba, que já dura 50 anos e contribuiu com a quase falência da ilha não alinhada, já seria um gesto de grandeza para com os vizinhos de baixo. Mas, uma vez instalado na Casa Branca, o garotão nascido no Havaí deve ter caído na real e sequer teve força para cumprir a extinção da prisão arbitrária de Guantánamo, decretada no primeiro dia de governo.

Na véspera da posse de Obama, o presidente Lula ousou lucidamente pedir uma mudança de relacionamento com o continente americano e lembrou: “Os Estados Unidos, durante muito tempo, tiveram uma política equivocada para a América Latina”. Com a devida correção de que não foi somente “durante muito tempo”, mas por toda a vida, o que Lula afirmou não é mera retórica, é história. Sempre que intervieram na América Latina, os Estados Unidos o fizeram em proveito próprio, inclusive quando interferiram na instalação de regimes autoritários no continente.

O histórico dessa relação desigual (inspirado em artigo publicado no site “America Latina em Movimiento”, de 19 de setembro de 2008) não deixa margem à dúvida quanto às intenções norte-americanas. A famosa Doutrina Monroe, divulgada em 1823, quando os países da América Latina principiavam seus movimentos de libertação, já deixava claro que o país do norte considerava toda essa região debaixo de sua esfera de influência. Vejamos a cronologia das intervenções imperialistas:

1836 – Os Estados Unidos empreendem guerra contra o México com o objetivo, alcançado, de anexar o estado do Texas.
1898 – A guerra com a Espanha garante aos EUA o ganho do controle sobre as antigas colônias espanholas no Caribe — incluindo Cuba e Porto Rico — e no Pacífico.
1903 – Os americanos do norte criam um foco separatista na região que hoje é o Panamá, justamente o lugar onde estava sendo construído um canal entre os oceanos Atlântico e Pacífico. Com a ajuda de cima o Panamá declarou independência da Colômbia. Os EUA terminariam as obras e ficariam com o direito de usufruir do canal por um século inteiro.
1911 – Os Estados Unidos providenciaram nova guerra com o México, alegando que em Vera Cruz haviam aprisionado alguns soldados e se recusavam a pedir desculpas. Por conta disso, atacaram a cidade, bombardearam e mataram mais de 100 mexicanos. Foi um pretexto para tirar de cena a luta trabalhista e a “ameaça” do socialismo.
1915 – Os Estados Unidos invadiram o Haiti, onde uma força da marinha desembarcou na capital Porto Príncipe, dirigiu-se às caixas fortes do “Banco Nacional do Haiti” e levou os mais de quinhentos mil dólares que ali havia. As forças estadunidenses ficaram no país até 1934, quando deixaram o povo entregue a uma das dinastias mais sanguinárias da região: a família Duvallier: Fraçois (de 1957 a 1971) e seu filho Jean-Claude até 1986.
1916 – As tropas estadunidenses invadem a República Dominicana, onde permaneceram até 1924, deixando como presidente do país outro ditador da pior estirpe: Leônidas Trujillo, mais conhecido como “o chacal do Caribe”, que ficou no poder por 31 anos.
Anos 30/40 – A segunda guerra mundial leva mais de 18 milhões de estadunidenses para as Forças Armadas e as atrocidades de Hitler fazem com que este conflito se transforme na guerra mais popular vivida pelos Estados Unidos, sendo inclusive apoiado pelos trabalhadores ligados à esquerda. Foi ali que o país consolidou a sua fama de paladino do bem, salvando a humanidade do então denominado eixo do mal.
1946 – Quando assumiu a presidência da Bolívia um jovem militar nacionalista apoiado pelas forças populares, os Estados Unidos foram criando instabilidades internas, no seu velho estilo, até que conseguiram organizar o linchamento e o assassinato do presidente. Com isso a Bolívia saiu da influência das idéias “esquerdistas”.
1954 – Também a Guatemala nacionalista, sob o comando de Jacobo Arbenz, sofreu o peso da mão dos Estados Unidos, aborrecido com o tratamento dado a sua empresa United Fruit. O país foi invadido e o presidente deposto.
1954 – Ainda no mesmo ano, os olhos se voltaram para o Brasil e, usando o mesmo jogo de intrigas e mentiras, a CIA consegue levar à bancarrota o governo de Getúlio Vargas, com o providencial suicídio do presidente.
1955 – Foi a vez de derrubar Juan Domingos Perón e entregar toda a indústria estatal argentina nas mãos privadas, provocando o desmantelamento e a desnacionalização da economia.
1961 – Os ianques tentam acabar com a revolução cubana a partir de uma invasão via Playa Girón. O exército americano, formado basicamente de mercenários, foi derrotado.
1964 – São públicas as tramóias montadas pelos Estados Unidos para depor o presidente João Goulart, no Brasil. Agora começam a aparecer as provas de que a morte de Jango no Uruguai tenha sido um envenenamento urdido pelo serviço secreto.
1965 – Os Estados Unidos invadem outra vez a República Dominicana, onde principiava emergir um levantamento revolucionário popular.
1973 – No Chile de Salvador Allende, incendiavam-se os desejos de vida digna e soberania. Atuando junto à direita, cooptando sindicalistas e lideranças sociais, os estadunidenses foram criando o caldo da contrarrevolução até culminar com um golpe de estado que colocou no poder Augusto Pinochet. Este encharcaria de sangue o país, sob as bênçãos da CIA e da Escola das Américas, que ensinava aos militares as técnicas mais sofisticadas de tortura.
1973 – Também o Uruguai sofreu a intervenção alheia e uma ditadura sanguinária se instalou.
1975 – Dois anos depois era o Peru que caia a partir de um golpe contra o presidente nacionalista Juan Velasco, que havia nacionalizado empresas estadunidenses e feito uma reforma agrária que beneficiara mais de 370 mil famílias.
Anos 80 – Os Estados Unidos estiveram por trás de todos os movimentos contrarrevolucionários da América Central, combatendo com mercenários os partidários de transformações radicais naquela região. Tirando os sandinistas que lograram vencer na Nicarágua, os demais não conseguiram. Antes do sandinismo, eram os EUA quem treinavam e financiavam a ditadura de Somoza.
1981 – São as tramas secretas dos agentes da CIA que viabilizam o assassinato de Omar Torrijos no Panamá, um presidente nacionalista que logrou rever a questão do canal, viabilizando um acordo de devolução para 1999.
1982 – Os Estados Unidos ajudam, pela segunda vez na história, a Inglaterra a abocanhar as ilhas Malvinas da Argentina. A base estadunidense na ilha Ascensión, os satélites ianques no espaço, as armas, combustíveis, mísseis, e até o serviço diplomático, tudo foi colocado a serviço dos interesses ingleses.
1983 – Os Estados Unidos promovem a invasão à pequena ilha de Granada, que caminhava pela senda do socialismo.
1989 – Bush pai mandou invadir o Panamá e lá aportaram mais de 26 mil soldados. O objetivo era depor Manuel Noriega, que tinha sido um bom aliado – e agente da CIA – mas estava querendo caminhar com os próprios pés. Assim, com o argumento de que ele liderava um cartel de drogas, o exército estadunidense baixou em Ciudad Panamá e, no ataque ao bairro mais populoso da capital, El Chorrillo, mais de quatro mil civis morreram.

Povos subjugados
O Dicionário de Política, de Norberto Bobbio (Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino), define o imperialismo como a “expansão violenta por parte dos Estados, ou de sistemas políticos análogos, da área territorial da sua influência ou poder direto, e formas de exploração econômica em prejuízo dos Estados ou povos subjugados”. O termo originalmente está associado ao império inglês e se considera que a Alemanha, a Itália e o Japão foram imperialistas nos anos 30, 40. A mesma obra acrescenta que, depois de 1945, quando se apagou o impulso imperialista desses Estados, “o fenômeno do imperialismo continuou a manifestar-se (…) na política neocolonialista praticada principalmente pelos Estados Unidos”.
“Os imperialistas são os parasitas do patriotismo… nunca perdem de vista as oportunidades de negócios lucrativos”, já observava, no começo do século passado, o economista inglês John Atkinson Hobson, autor do clássico “Imperialismo: um estudo” (1902) e um dos primeiros a pesquisar o tema: na transformação capitalista, os mercados internos já não bastam e se tornam necessários os mercados externos para a absorção da produção, mercados que se conquistam com a conquista das colônias. Buscando explicar a rivalidade inter-imperialista entre as grandes potências, na busca por mais mercados que conduzira à Primeira Guerra Mundial, Vladimir Lênin, na obra “Imperialismo, estágio superior do capitalismo” (1916), afirma que “o imperialismo é o estágio monopolista do capitalismo”.
De acordo com a teoria marxista do imperialismo, todas as formas de violência internacional foram provocadas pelas contradições estruturais do capitalismo, que consegue fazer do Estado um instrumento cada vez mais eficaz a serviço dos seus fins. O imperialismo seria assim um instrumento essencial para fazer face às contradições do capitalismo e para prolongar a sua sobrevivência, estendendo-as ao âmbito internacional com a exploração de outros povos. Mas a União Soviética, socialista, também foi imperialista, assim como a Rússia ainda o tenta ser. Portanto, historicamente, como política de expansão e domínio territorial, cultural e econômico de uma nação sobre outras, ou sobre uma ou várias regiões geográficas, o imperialismo extrapola os sistemas econômicos, políticos e sociais.
Como o capital sempre venceu — ou sempre vence? — o imperialismo, ou, mais modernamente, o neocolonialismo, é associado ao contexto do capitalismo e à busca por mercados e lucro à força, a qualquer custo. Inclusive militar. Os Estados Unidos invariavelmente justificaram intervenções militares no mundo para combater revoluções ou para obter o controle de mercados com o discurso da Guerra Fria, e não em termos de objetivos imperiais. Mas a verdade é que a guerra virou um negócio para os capitalistas — americanos, sobretudo — e, hoje, grande parte da economia estadunidense está ancorada nesse “setor”.
Dois autores norte-americanos estudiosos do capitalismo monopolista, Paul Baran e Paul Sweezy, afirmam que os Estados Unidos não teriam tido, depois da Segunda Grande Guerra, um desenvolvimento econômico tão impressionante se não tivessem destinado parte considerável do seu orçamento aos armamentos. Garantindo ocupação para grande massa da população que seria improdutiva e investindo no setor tecnológico, pois grande parte das mais importantes invenções, usadas também no setor civil, provêm da atividade de pesquisa do setor militar.
Assim, voltando à cronologia das ações militares imperiais americanas, já nos anos 90 os EUA não se limitaram a intervir na América Latina, também estiveram presentes em “ações humanitárias” na Somália, Bósnia e Kosovo. No Afeganistão, mantiveram bem armados os exércitos do talibã para só depois considerá-los inimigos, destruindo-os na guerra pós 11 de setembro de 2001.
1995 – Os ianques invadiram mais uma vez o Haiti, com o argumento de que o governo de Bertrand Aristide era corrupto. Então, para “salvar” o povo, lá foram os marines. Estão lá até hoje, junto com tropas de outros países, entre eles o Brasil.
1999 – Entram também na Colômbia, desta vez com a bênção dos governantes locais. Sob o pretexto de combater o tráfico de drogas — os norte-americanos são os maiores consumidores de cocaína do mundo — programam o Plano Colômbia, que mantém a região sob o seu domínio militar, bem às portas da Amazônia, berço da maior biodiversidade do planeta.
2002 – Avançam sobre o Afeganistão e depois invadem o Iraque, sempre ancorados em fragorosas mentiras. E as mentiras seguem sendo as mesmas, desde o século 19.
2002 – Desde 1998, quando Hugo Chávez assume a presidência da Venezuela, os Estados Unidos vêm tentando colocar por terra todas as idéias nacionalistas que foram se conformando no andar do governo. E o poderio estadunidense é ameaçado quando Chávez começa a falar em socialismo, nacionalização do petróleo, combate à Alca e aproximação com Fidel Castro. Até que o serviço secreto inicia a mesma sorte de tramas, intrigas e formação para o golpe, que acontece em abril de 2002, mas dura pouco tempo.
2005 – Na Bolívia, vence as eleições um aymara que tinha no seu programa a proposta de nacionalizar as riquezas até então em mãos estrangeiras e dar autonomia às nações indígenas. A vitória esmagadora de Evo Morales lhe dá a condição de iniciar reformas que arrepiam o cabelo da oligarquia branca de Santa Cruz, que começa a chamar o separatismo. Tudo orquestrado pelos irmãos do norte. Não bastasse isso, Rafael Correa vence as eleições no Equador com um programa mais próximo de Hugo Chávez e Evo Morales. Era a formação do “eixo” de esquerda que deveria ser extirpado.
2009 – Em 28 de junho, o presidente Manuel Zelaya foi destituido pela Suprema Corte e exilado pelo Exército hondurenho. O ato ocorreu em função do desejo de Zelaya de realizar uma consulta popular para perguntar aos hondurenhos se queriam que, em simultâneo com as eleições a realizar em Novembro de 2009, se realizasse também uma votação no sentido de decidir a criação de uma Assembleia Constituinte que reformasse a Constituição para aprovar reeleições. O golpe de etsado contou com o apoio dos EUA.
2012 – O ex-bispo Fernando Lugo foi cassado no dia 22 de junho como presidente do Paraguai após ser considerado culpado por mau desempenho de suas funções em um julgamento político no Senado. Em menos de 30 horas, Lugo foi julgado, sentenciado e seu vice-presidente, Federico Franco, assumiu a Presidência até o término do mandato, em 15 de agosto de 2013. “Este golpe se soma à lista de atentados contra a autodeterminação dos povos latino-americanos, sempre realizados pelas oligarquias com autoria, cumplicidade ou tolerância do Governo dos Estados Unidos”, disse o Ministério das Relações Exteriores de Cuba em uma declaração oficial.
“A ação conjunta entre as elites predadoras nacionais e o estado terrorista ianque é recorrente e parece seguir sempre o mesmo método: criação de focos desestabilizadores, instrução militar, apoio financeiro e mentiras, muitas mentiras. Estas são reproduzidas à exaustão pelos grandes meios de comunicação, na eterna lógica de desinformação e de fortalecimento da ideologia dominante. Assim, com o mesmo velho método já utilizado em 1836, quando insuflou a elite da região do que hoje é o Texas a se separar do México, os Estados Unidos atenta contra a soberania dos povos sempre com o mesmo objetivo: garantir o seu domínio sobre países e as riquezas dos povos”. A opinião, fundamentada, é do historiador e pacifista estadunidense contemporâneo Howard Zinn, no livro “Uma história popular dos Estados Unidos”.
Mas, retornando à questão inicial: mesmo que Barack Obama mudasse a política imperialista dos EUA com relação à América Latina não o faria por altruísmo, mas por interesse. Um relatório publicado pelo instituto americano Council on Foreign Relations (CFR), entidade baseada em Nova York, afirma que os EUA devem “aprofundar as suas relações estratégicas” com Brasil e México. O texto também sugere que o governo americano reavalie suas relações com Venezuela e Cuba.
O documento intitulado “Relações EUA-América Latina: Uma nova direção para uma nova realidade” afirma que a região mudou e já não depende tanto dos norte-americanos. “A América Latina nunca foi tão importante para os Estados Unidos como agora. A região é a maior fornecedora de petróleo para os Estados Unidos e uma forte parceira no desenvolvimento de combustíveis alternativos”, diz o documento.
“Este relatório deixa claro que a era da influência dominante dos Estados Unidos na América Latina acabou. Países dentro da região não só se tornaram mais fortes como também expandiram relações com outras nações, como China e Índia”.
O CRF reconhece que por 150 anos a diplomacia americana foi baseada na Doutrina Monroe, que reivindicava “a América para os americanos”. No entanto, nas últimas duas décadas, esta visão teria se tornado “obsoleta” e Washington teria falhado na tarefa de readaptar sua política externa à nova realidade da América Latina. Mas parece que o cacoete imperialista é um vício sempre recorrente.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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