A barbárie, vez em sempre, mostra-se imensa e assustadora aos nossos incrédulos olhos, sombra indelével a perseguir a humanidade. A barbárie devora os corações humanos, parece que lhe tapa os olhos e, em lugar, lhe mostra uma outra realidade muito distorcida, maniqueísta: há preto e há branco, não há espaço para os cinzas.
A barbárie não só sequestra centenas de jovens na Nigéria, ou mata inocentes na Ucrânia, na Síria, não só constrói muros entre países, famílias (seja em Israel ou na Turquia). A barbárie também espanca até a morte uma mulher por causa de um boato, acorrenta a um poste um homem negro (seja no século XVIII, seja há dezoito dias), assassina homossexuais, culpa uma mulher por ter sido estuprada, mata um índio, ou antes, toda uma etnia.
Não se engane, ela não vem de fora, não é coisa estrangeira, extraterrestre: ela é humana, muito humana. Olhe um pouco para nosso passado, só um pouco: escravidão, invasões, colonizações, genocídios, duas guerras mundiais – e poderíamos citar muitas outras coisas igualmente vergonhosas e assustadoras. A barbárie é uma criação humana. Um leão devorando uma presa não é bárbaro. Uma universidade hostilizando uma estudante por ser negra, ou um amontoado de homens de bem caçando índios com armamento pesado, sim.
Também não é apropriado ignorá-la, fingir que o elefante não está na sala, sob a pena de o elefante nos expulsar da sala, da casa, da vida. Sim, estou lembrando da “Casa Tomada” de Julio Cortázar – do que mais, não é mesmo? Sim, a literatura é um local normalmente utilizado para falar dessas coisas que nos embrulham o estômago. Eu sempre que releio a “Casa Tomada” fico com falta de ar e confesso que nunca consegui terminar de ler o “É isto um homem?” do Primo Levi. Claro, “1984” me parece a cada dia mais profético e quase todos os dias eu repito uma frase do Bernardo Kucinski no “K.”: o sistema repressor continua organizado.
A literatura, vez por outra, resolve nos lembrar do quão bárbara pode ser a humanidade. E o faz talvez da melhor maneira possível: nos colocando dentro da história, nos fazendo cúmplices, vítimas, assassinos. A ficção às vezes – ou quase sempre – nos conta mais verdades do que aqueles que buscam sempre a objetividade do real. É que o real quase sempre é muito pouco factível, verossímil. E quando a realidade fica muito estranha, melhor escrever ficção.
Mas não se engane: a literatura não nos salvará. Atribuam a salvação a outro deus, por gentileza. Ou, acaso, todos os livros que já se escreveram sobre os genocídios perpetrados na Segunda Guerra contra judeus, homossexuais, ciganos e outras tantas minorias, acaso impediram que outros genocídios fossem cometidos anos depois contra bósnios, ruandeses, palestinos, índios de diversas etnias da América Latina?
Infelizmente, como diria Todorov no seu lindíssimo “Memórias do mal, tentação do bem”, a literatura não nos salvou, nem nos salvará. Mesmo assim, ela não deve cessar de contar suas histórias. Não que eu ache que a literatura tem obrigação de nos lembrar o que nunca deve ser repetido, o que nunca deve ser esquecido. Não acho, na verdade, que a literatura tem obrigação de coisa nenhuma. Ela ainda é um dos últimos espaços humanos de liberdade, onde cabe tudo, inclusive, uma luta aguerrida contra a barbárie. (Quem contará as histórias dos vencidos que ficaram de fora dos livros de História?). Não acho que a literatura deve fazer nada, mas acho que ela pode fazer tudo o que quiser.
Se a literatura não nos salvará, o que então? Não sei. Já disse aqui outras vezes que não tenho respostas, só perguntas. Muitas perguntas. Talvez seja a própria humanidade a se salvar, quem sabe. Eu, pessoalmente, não gosto de ter esperanças nisso. Outro dia, me vendo numa discussão sobre mudanças necessárias, um rapazinho me perguntou se eu acreditava que essas e aquelas coisas que andamos fazendo vão um dia mudar a humanidade. Respondi a ele com muita seriedade: deus me livre de acreditar numa coisa dessas. É abrir um flanco enorme para uma frustração incomensurável. E ele muito incógnito me perguntou: por que continuar fazendo, então? Ah, meu bem, porque não há outra coisa a ser feita. Se não seguir fazendo essas migalhinhas em que acredito/acreditamos, como dormir tranquila à noite? Como ficar tranquila com a minha própria consciência sabendo que poderia ter feito e não fiz?
Não, a literatura não nos salvará, mas é preciso seguir escrevendo. É preciso seguir contando certas histórias, tentando tocar os corações dos seres, tentando despertar algum tipo de empatia, de amor. Mesmo que isso seja tão impossível.