Esperar uma carta é a coisa mais anacrônica e injustificada deste século, pensou enquanto olhava pela janela do quarto a rua vazia sem sinal de que um carteiro desavisado aportaria por ali. Poderia ser um e-mail, uma chamada de telefone, uma mensagem instantânea ou até uma chamada de vídeo, tão impossível e futurista. Mas ela esperava mesmo era uma carta, como se fosse sua bisavó na casa da fazenda à espera de notícias do homem que viria resgatá-la da vida triste e assustadora.
Sua bisavó nunca fora resgatada. E ela ainda temia a tristeza. Suspirou profundamente a insanidade de esperar por uma carta numa tarde morna de primavera do século XXI. A princípio, a ideia de conversarem por cartas lhe pareceu romântica e delicadamente bela, mas a verdade é que se consumia num poço infindo de ansiedade destruidora que talvez fosse aplacada por uma simples mensagem de celular. Ou talvez, só se aprofundasse.
Sentia-se sendo arrastada para um pântano insondável dentro de sua própria mente. Lá se escondiam seus medos mais inconfessáveis, fraquezas infantis e desesperos inexplicáveis. Esperava uma carta que não chegava nunca. E a espera por um amor que viria em letra de forma azul sobre um papel branco a fazia perder-se em si mesma. A ansiedade tornava sua mente incrivelmente criativa. Sentia-se como um general num livro de García Márquez.
E, ao mesmo tempo, havia algo de doce naquela ânsia. Uma mensagem era tão instantânea que não seria capaz de carregar de lá para cá toda a profundeza de seus sentimentos. Precisava papel, tinta, uma coisa mais ancestral e antiga, com sabe-se lá que aura fundada na tradição. Precisava sentir-se mesmo meio avó, meio antiga, para não perder de todo o amor que se mantinha sustentado na distância por finas teias que a cada vento ameaçavam partir-se.
A cada carta, afundava-se mais nesse pântano. Eram as cartas que sustentavam seu amor. Porque, quando elas chegavam, traziam mais que palavras, traziam um cheiro, um tempo que foi gasto em contar com as próprias mãos uma história riscada no papel, às vezes uma flor seca, uma asa de borboleta, uma foto impressa em papel, um pedaço de fita colorida, lembranças tecidas, tramadas em coisas mais concretas que bits etéreos, ondas viajando por cabos, pelo espaço infinito. A carta concretizava um amor que, em essência, era a coisa mais etérea e a maneira mais invisível de existir.
Era como se, com uma carta, pudesse mesmo sentir mais próximo de si o hálito quente e as mãos macias, a voz rouca e a risada cálida, e quando segurava o papel tão fino e morto, quase podia sentir-se a abraçá-lo, sentir a quentura viva de suas costas existindo no côncavo de suas mãos. Era ilusão, claro, mais era mais palpável ilusão do que palavras numa tela que sequer se pode cheirar ou guardar numa caixa.
Lembrava-se de um texto de Kafka com um suor frio a percorrer-lhe a espinha. “Beijos escritos, em vez de alcançarem o destino, são bebidos no caminho pelos fantasmas. É a partir dessa nutrição abundante que eles se multiplicam enormemente”. Estavam a alimentar fantasmas com os beijos não dados e os carinhos tão distantes que as mãos não tocam. Os fantasmas que teciam com mãos frias e trama solta aquele amor. Eles eram suas únicas companhias na casa que insistia em ficar vazia mesmo nas tardes mais bonitas de primavera. Moravam consigo, em sua mente, em seu peito, no desavisado momento em que um pensamento sutil escapa para a consciência e tudo muda. Lá estavam seus fantasmas.
E a tarde que demorava a passar, sem sequer um zumbido na rua que denunciasse a chegada do carteiro. Ela habitava o vazio desses dias de espera, com a calma forçada de quem se resigna sem aceitar o próprio fado. Amava, mas era uma espera inconformada. A presença das cartas não eram o suficiente para preencher os espaços todos da casa.
Enquanto morria nestes devaneios sem começo nem fim, ouviu como um cão o barulho da carta sendo colocada na caixa de correspondências. Respirou fundo para conter a corrida desabalada que o corpo pedia e caminhou fingindo calma até o lado de fora da casa, a tempo de vislumbrar o carteiro no final da rua. Com a carta nas mãos, voltou para a poltrona que ainda guardava o calor de seu próprio corpo ansioso. Aquietou-se olhando o envelope ainda fechado com seu endereço escrito nas conhecidas letras azuis.
Pousou o pequeno pedaço de seu amor na mesinha de canto e levantou-se para preparar um chá. “Os fantasmas não passarão fome, mas nós iremos perecer”.